Rasgue a tela, se puder. Esta frase cair-me-ia bem hoje. Gostaria de usá-la para desafiar alguém que, um dia, amarrotou a minha estima, machucou a alma e adiou um projeto. Eu era ainda menino, vivendo com a família, no Conjunto Abolição IV, periferia de Mossoró. O meu pai possuía uma mercearia lá, a minha mãe era funcionária pública no posto de saúde do bairro vizinho, a minha irmã, o meu irmão e eu éramos três crianças de feitios diferentes e filhos de Seu Luiz Carlos e Dona Francineide.
Naquela época, a crise no Brasil era, sim, uma crise. Mesmo alguns canais de TV anunciando mentiras para encobrir interesses políticos mesquinhos, enfrentávamos problemas sociais e econômicos devastadores. A mercearia nunca conseguia ser mercearia. Por mais esperança que os meus pais tivessem, fazendo empréstimos a bancos e sortindo as prateleiras com artigos novos, as ações empreendedoras derrocavam poucas semanas depois, restando-nos as dívidas e os fiados, e o nosso comércio voltava a ser uma simples bodega. Ou nem isto! Tínhamos vergonha de assumi-lo como bar, sinônimo de vício e de prática não cristã. Mas, de facto, vendíamos pão e cachaça mais do que qualquer coisa.
Era uma tarde, quando eu geralmente ocupava o tempo fazendo os deveres da escola e atendendo na mercearia. Naquele dia, como muitos outros, o fluxo de clientes era mínimo. Pré-adolescente, com uma sexualidade que florescia tímida e temente à ideologia cristã, eu despejava no papel palavras difíceis de pronunciar. Tudo era pecado, como bem me ensinavam. Sobre o balcão, havia um maço grosso de papel de embrulho. Uma das folhas estava por menos da metade; a outra parte deveria ter-se ido protegendo um pão até à casa de alguma família do bairro.
De cabeça baixa eu estava, a caneta corria a superfície do papel e escorria a tinta azul no desenho lexical. A ânsia de registrar ali o que eu não poderia dizer, nem sabia como o fazer, nem que nome dar… era isso: a ansiedade de expressar-se.
_ Menino, seu pai sabe que você está estragando papel com essas besteiras?
Levantei a cabeça, assustado e envergonhado pelo flagrante. Aquele homem que entrara subitamente no estabelecimento havia-me lido sem que eu o percebesse, desdenhou e desdenhou de mim. Ele ignorava a palavra “privacidade” e o seu significado. Passou-me um sermão.
_ Oh, você, estruindo papel de embrulho. Depois, chega alguém pra comprar pão e o que você vai fazer? Eita, se seu pai pegar você, dá-lhe uma surra. Crie juízo, cabra.
Eu, menino tímido e acanhado na época, disse nada. Senti-me mal, muito mal, péssimo. As lágrimas esperaram alguns minutos, aguardaram a partida do invasor da minha privacidade e, depois, descambaram. Reduzi o papel, o embrulho, a escrita e a minha alma em pedaços. Primeiro, amassei-o com um desgosto tão intenso que eu, criança, não sabia explicar o que sentia nem por quê. Eu tentava imprimir tanta força naquele ato. E, como se não bastasse, eu desamassei e, então, comecei a arrancar cada pedacinho daquele finado papel de embrulho, triturando-o como estripando a alma.
Parece demasiado para uma criança. Porém, estava aquela criança na pré-adolescência, solitária, mal resolvida, com comportamentos de gênero já desde cedo criticados por alguns com frases inocentemente castradoras. O medo de que o filho fosse guei, o medo de que o sobrinho o fosse, o medo da honra manchada pela sexualidade do menino que não se enquadrava, que não jogava futebol, que não pegava as meninas, que ficava dentro de casa escutando Gil, Gal e os outros baianos, que não se dedicava muito à interação com outras crianças.
É interessante que ele era admirado por ser bom de matemática e de outros assuntos escolares, por ser um filho obediente, por ajudar ao pai e à mãe a tomar conta da mercearia e dos irmãos. No entanto, apesar disto, mais importante era vigiar e reprimir o menino estranho, um possível dissidente de um projeto de masculinidade hegemônica. Isto era mais importante do que permitir qualquer ensaio de criatividade, de escritura e de subversão de uma criança inocente. Temia-se o adulto em que ele poderia tornar-se.
O espaço daquele prospectivo embrulho de pão era um canal perigoso. Era povoado por uma caneta que parecia correr solta. Se o estranho amigo da família não surgisse inesperadamente, aquele papel seria o estopim de uma combustão de subjetividades. Aquele menino rabiscava o que sonhava ser quando crescesse. Ele imaginava que pudesse ser escritor. Hummm… Triste engano. Escritor? Ele tinha de sobreviver e sustentar-se. Depois de o papel-embrulho de alma ser atirado ao lixo, ele deixou aquele sonho de lado. Naquele contexto socioeconômico do país, ele até pensou que a única saída seria abrir uma banca em algum lugar, vender qualquer coisa e tentar a sorte na loteria. Que bom que o Brasil mudou, tem mudado gradativamente, ainda há muito por que lutar, mas que bom que os tempos são outros. O sonho de “quando eu crescer, eu quero ser” foi adiado. A cena do embrulho surgiu como punição. Porém, aquele menino, hoje adulto, voltou a acreditar na escrita como estratégia de construção de si, do fortalecimento da autoconfiança e do arrefecimento de emoções e traumas mal resolvidos.
Anos passaram, em outras plagas eu, aquele menino, estive e pude perceber que não importa o espaço e o tempo nem as crises a esses ligadas, mas é verdade que pão e cachaça são itens essenciais de qualquer cesta básica. Literatura seria dos gêneros supérfluos ou de luxo, se não fosse a minha cachaça e o meu pão de cada dia. Mas, mesmo durante o adiamento de um sonho, eu ainda me ensaiava, construía-me, rabiscava e arriscava-me. O projeto de tornar-se um escritor foi adiado por anos. Mas, os tempos são outros. E o papel, entre as tantas utilidades que ganhou em minha vida, também surgiu com novas texturas. Já não é de celuloide, é virtual, democrático, acessível e… difícil de rasgar.
hi sir seraphim
I am an admirer of the Portuguese language and I like beautiful poetry and tristea that seem to report something that actually happened.
I’m glad to see from the new poruguesa language and talented authors
thanks for listening.
Collon young
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Tks, Conallyoung. Tks for your words and visit.
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Que felicidade deparar-me com seu texto, Cássio. Muito sensível e pertinente, ainda mais em dias duros de moralismos conservadores a que estamos testemunhando na vida política e social dos brasileiros. Gosto de ti. E agora, também dos seus escritos. Um prazer lhe encontrar, mesmo virtualmente. Beijo grande!
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Lysia, que bom tê-la por aqui! Fico muito contente que nos encontramos novamente, mesmo que ciberneticamente. Ante a dureza de dias de moralismo algoz, façamos da arte o nosso melhor instrumento para manter a nossa sanidade. Os meus sinceros parabéns pela sua música e um beijo imenso!
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Grazie, Cassio! Grazie mile.
Brent Kincaid, WordMusic
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Brent, thanks for the visit. You’re always welcome.
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Uau, Cássio! Me vi criança também, transbordando sonhos e inocente diante das tantas castrações a que estamos sujeitos… Adorei te ler! Beijos
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Roberta, adorei tê-la aqui. Vejo que a escrita e a arte são algumas das nossas armas contra uma ideologia castradora. Obrigado pelo carinho. Beijos.
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Li o teu texto e gostei muito por ser uma bela narrativa pessoal e mais comum do que pensamos nestes rincões do mundo. Poético o texto.
Só fiquei intrigado com uma coisa: quando você o escreveu, a impressão que você me deu foi a de que você voltava a ser o Cássio-menino, mas ao longo do texto, aparece o Cássio-homem-donodopróprionariz; talvez não fosse interessante (ousadia de interferir na obra de um escritor) ter também uma outra versão rústica, naif, com um vocabulário do Cássio-menino, como em vez de dizer comportamentos de gênero (o que se usava para uma pessoa diferente na tua região, na minha era chamar de esquisito), guei (?) [se fosse lésbica, usavam o termo mulher-macho], projeto de masculinidade hegemônica (cabra-macho) [eu me lembro que diziam assim: segurem suas cabritas que meu bode está solto].
Independente disso, eu gostei muito por ser uma vivência ainda contemporânea, mesmo nos grandes centros. Bjs e tudo de bom.
Desculpa-me fazer algum tipo de interferência na tua obra; como não sei para que público ele seria voltado, achei que talvez o Cássio-menino pudesse assumir o papel definitivo de protagonista, já que, por você ser o escritor do texto, subentende-se que você existe como o Cássio-homem, e o Cássio-menino afloraria definitivamente.
Especulações minhas. Compartilhei no meu blog.
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Marcos, gostei muito da sua crítica. Acredite que, em algum momento quando eu escrevia o artigo, expressões como “Isto não é coisa de macho”, “Aprenda a ser homem, cabra”, algo do tipo, surgiram. Porém, quando vi, o texto tomava um rumo que eu não havia planejado. Tentando evitar alongar-me, decidi suprimir as expressões citadas, pois o meu objetivo inicial era divulgar O Emplasto, revista literária digital. Daí, a ideia de desafiar um “fantasma” da minha infância a rasgar a tela.
Na tentativa de assumir esse eu que é “dono do próprio nariz”, a fala do Cássio-adulto apareceu de forma um tanto analítica, talvez. E, por isto, penso, expressões como “comportamento de gênero” fluíram. Durante as minhas revisões, eu não atentei para a possibilidade de “comportamento de gênero” e termos congêneres destoarem da coloquialidade. Talvez isto tenha ocorrido por fazer parte da minha rotina, porque estudo o assunto. E eu deixei-as. Essas já compõem o repertório linguístico do Cássio-adulto. (risos)
Entretanto, você deve ter percebido que o meu objetivo primeiro foi, de facto, quase esquecido. O texto ganhou vida, eu vi que tinha uma crônica e que gostava dela. Então, deixei o texto “autônomo” e publiquei-o no blogue. Em seguida, voltei a ocupar-me da Revista O Emplasto no artigo “A minha primeira vez”.
Pra já, quero agradecer a sua atenção a esses detalhes do texto e dizer que as observações ajudam a pensar esse processo de invenção do texto e de como analiso a minha realidade do passado e do presente. Também fico muito grato por você tê-lo partilhado no seu blog (http://marcosasantosmd.blogspot.pt/).
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Quantos papéis rasgados, quantos sonhos perdidos e enterrados em nome do pecado e da vergonha? Mas, em meio a tantos devaneios de uma era opressora, surge à coragem de quem temeu por apenas uns instantes, pois sabia que naquele momento histórico era melhor obedecer, cruzar os dedinhos e dizer: um dia eu falo, penso e escrevo o que eu quiser!
Tenho orgulho de ter conhecido esse menino já adulto, vindo do interior do Estado para a capital. Vi o despontar de alguém sem medo de ser feliz, de alma pura, sarado dos destroços de um tempo e vi também, um grande escritor nascendo no paradoxo do sistema educacional: de um lado educo para a diversidade e do outro renego sua forma de se vestir, de usar o cabelo e de falar. Mal sabiam eles do gênio intelectual que estava nascendo.
Rasgue a tela, se puder é uma resposta a essa falsa moralidade imposta pela sociedade.
Sucesso, meu amigo!
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Obrigado pelo carinho, Fátima. Interessante você recordar do modo de vestir, pentear (ou despentear) e falar. Eram estratégias para me ensaiar e para ‘educar’ colegas de trabalho a ver a diversidade que estava não somente em mim e em nós, mas, sobretudo, entre os nossos estudantes da época. E esses mereciam muito respeito. Beijos.
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Outra coisa, no mei dum milhão de posts empoeirados
Soube-me ler os teus, soube-me a gente
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Ei, Luis, então, eu fui o sortudo dos empoeirados? Boa! Risos.
Vou torcer para ser sorteado de outras vezes. Obrigado pela leitura!!!!
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Não gosto de escrever em telefones, dá trabalho e muitas vezes ficam-me palavras pelo caminho.
Neste caso o bem ficou pelo caminho., devia ser ‘Soube-me bem ler os teus’ precisamente por não terem pó 🙂
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A literatura são só palavras
Só por si são ocas e inuteis
Prefiro antes o pão a cachaça e is amigos
Então podem vir as palavras
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Pão embebido em cachaça resulta em profusão de palavras. 😀
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Viva as novas telas e que nunca mais rasguemos nossos anseios mais íntimos e saudáveis!
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Verdade. Mas também penso que, hoje, já crescido e maduro, eu serei mais corajoso, reagindo de outra forma.
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hello sir seraphim this story is beautiful and intelligent fantastic, reports me a lived exiência
congratulations.
conn.young.
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Tks. Glad you enjoyed it.
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Thank you for attention
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