
Era uma sexta-feira chuvosa no fim do mês de Janeiro. Eduardo estava em casa a trabalhar num projecto, até que decidiu sair e buscar um lugar para comer. Ele tem pouco mais de trinta anos e é um tipo calmo, dedicado ao seu trabalho, reservado, mas também sensibilizado com os problemas dos seus semelhantes. Ele vem de uma família humilde e, desde pequeno, foi ensinado que devia agarrar com unhas e dentes cada oportunidade que a vida lhe oferecia para ser uma pessoa melhor. Diante das dificuldades que os seus pais enfrentaram para educar cada um dos seus filhos, não era surpreendente que Eduardo se tivesse tornado num tipo que planeava cuidadosamente cada passo para transformar sonhos em objectivos… em realidade. Ele lutava pelo direito de ter direitos. Não se rendia a devaneios. Era um homem prático.
A busca por uma tasca para fazer uma refeição era somente uma desculpa para sair um pouco e tentar desanuviar. Como tem ocorrido com frequência, dentro ou fora de casa, ele martelava questões sobre o seu futuro, sobre o próximo passo logo após o término do actual contracto de trabalho, sobre o fim da sua estada em Lisboa. Por inúmeras horas, ele martirizava-se pelos falhanços cometidos no cumprimento de prazos e por sua insatisfação quanto aos resultados obtidos. Apesar de prático e realista, custava-lhe aceitar que não mantinha total controle sobre a própria vida. Ninguém o tem.
Ele saiu. Precisava de relaxar um pouco. Era difícil, mas que, ao menos, tentasse… Ponderava a respeito da sua vida, caminhava devagar, demonstrava um pouco de ansiedade. Como eu te disse, custava-lhe aceitar que não tivesse total domínio sobre a sua vida, apesar de ser um homem prático e cauteloso. Aparentemente, nada foge-lhe ao controle. É o que ele deseja.
Entrementes, sucedem-lhe acontecimentos como este que eu cá estou a ti contar. A tarde seguia nebulosa. A chuva dera tréguas, mas a neblina fina era constante. Eduardo andava sem pressa, sob o guarda-chuva azul. Ele passava por uma rua próxima a uma conhecida fundação cultural da capital portuguesa. Caminhava pela calçada em frente a um edifício provavelmente do tempo do fascismo. De súbito, baixou a vista e surpreendeu-se com um corpo desfalecido. Não tenhas dúvida: havia um corpo no meio do caminho.

Eduardo fechou o seu guarda-chuva, encostou-o no muro do edifício, agachou-se e curvou-se o quanto pode na direcção do cadáver. Ficou muito próximo. Já não respirava. Era apenas um corpo morto no meio da calçada. Era jovem e já nada significava para quem quer que fosse. Pedestres passavam, e a apatia era visível no ritmo dos seus passos.
Olhou-o nos olhos. Imaginou ver-se reflectido na pupila do outro. Isto causou-lhe uma estranheza. O que sentia era mais do que uma simples vertigem. Quanta vida ficou por viver? Ou quanta vida deixou de viver? Eduardo perguntava a si.
Estava morto numa via pública, nas proximidades de uma famosa arena de touradas e de um grande espaço de exposições de Lisboa. Isso parecia controverso ou, no mínimo, intrigante. O quão espectacular seria o fim de um mortal ordinário se comparada com os eventos em que ceifam vidas na arena dos touros? O quão espectacular seria o desaparecimento de um mortal ordinário se comparada às caras exposições de arte cujo motivo pode ser a morte e a vida alheias? Poder-se-ia indagar isso e muito mais, mas Eduardo não estava para tanta filosofia. E, caso estivesse, seria provável não chegar a nenhures, ao menos não naquela ocasião.
Eduardo topou com um cadáver abandonado ali na passagem dos pedestres. É provável que tenha sido vitimado pela inveja de seres mal intencionados. Eduardo conjecturava sobre as possíveis causas daquele falecimento.



Era um pássaro jovem que, ainda há pouco, tinha pulado do galho, ensaiando a sua independência e inaugurando a sua primeira aventura na vida, o primeiro voo. Ensaiou percorrer um trajecto aéreo incomensurável. Almejava a liberdade.
No entanto, mal aprendeu a sonhar, mal começou a voar, caiu abatido no meio do caminho. Em pleno voo, foi perseguido e atacado de diferentes maneiras. Esforçou-se por atravessar incólume aquela batalha, mas foram bicadas incontáveis… em várias partes do corpo. As asas foram golpeadas, estavam aleijadas e para nada serviam. O voo foi suspenso precocemente.
Afinal, o que é a morte se não um voo interrompido? Eduardo apanhou o guarda-chuva e preparava para regressar à casa. Sem ter nada a fazer para reanimar o pássaro morto, ele permaneceu no local, a admirar a morte e a reflectir sobre a sua própria vida por alguns minutos.
Aquele corpo poderia ser o seu. Todo o caminho percorrido naquele dia nebuloso levou Eduardo a encontrar a si próprio. O pássaro já não respirava. Porém, nem sempre a interrupção de um voo implica o fim do percurso. Digamos que possa ser uma breve parada para reabastecer e logo seguir adiante.
E a fome de Eduardo? Ah, como eu te disse antes, aquilo lá era apenas um pretexto para sair de casa e desanuviar. Se ele relaxou um pouco? Sinceramente, eu não acredito que o tenha.
(Reparo agora que repeti demasiado a palavra “algo”. As minhas desculpas. Cansaço e alguma pressa.)
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Não te preocupes, Isabel. Isto passa mesmo. Também penso que eu poderia ter evitado a repetição de alguns termos no texto. Ainda pondero a este respeito, principalmente se eu resolver retomar ou reelaborar a ideia da narrativa para um momento. Agradeço-te imensamente a atenção.
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Cássio, li três vezes o teu conto, pelo qual desde já te parabenizo. Pelo tema, pela linguagem utilizada, pela narrativa escorreita e pelo aspecto gráfico, muito bem entremeado com fotos que gosto.
À medida que li, apontei os seguintes tópicos:
– A busca de uma tasca era somente uma desculpa para sair um pouco.
– Martelar questões sobre o futuro.
– Ninguém tem total controle sobre a sua vida.
– Afinal o que é a morte se não um voo interrompido?
De certa forma senti-me identificada com o protagonista da história (e agora estou na dúvida, mas pensei no homem) porque também eu muitas vezes vou em busca de algo só para não ter a sensação de que estou a acomodar-me. Depois, acontece-me, a propósito de pequenas coisas, encontrar uma resposta para algo que preciso de resolver ou perceber que não devo valorizar tanto algo que me atormenta.
E é esta caminhada de algo aparentemente insignificante para reflexões sobre a vida, que achei mais cativante no teu texto.
Não sei se a morte é um voo interrompido. Agrada-me a forma como a questão é posta, mas não tenho opinião formada sobre o que é a morte. Também não sei se não querias referir-te a um plano metafórico, como o abandono de projectos que não é viável concretizar.
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Isabel, muito obrigado pela leitura cuidadosa. Alegra-me muito. Quando escrevia o texto, em algum momento, senti-me um pouco ansioso, pois não conseguia usar muitas metáforas para o acto fúnebre. Tu trouxeste-me esta outra metáfora sobre projectos abandonados. E agradeço-te. Agora, penso: se tomarmos a morte não como o fim ou como algo trágico e derradeiro, mas como MORTES que nos ocorrem quotidianamente, poderemos considerar que abandonamos alguns projectos para priorizarmos outros, deixamos algo morrer para dar vida a outro “algo”, ou morremos um pouco a cada dia para nascermos no dia seguinte.
Depois de ler o teu comentário, acho que eu não imaginei a continuação da vida pós-morte material. Foi o sentido que tu atribuíste, quando disseste “Não sei se a morte é um voo interrompido”? Pensava na vida pós-morte ou na vida num plano extraterreno?
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Em certos momentos, o texto provoca a imersão do leitor, deslocando-o intencipsicologicamente (?????) para dentro da experiência narrada. Gostei muito.
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Obrigado pela leitura, Marcos. Fiz algumas mudanças na última parte do conto para resolver algumas contradições. E tirei a referência geográfica ao Brasil, a fim de expandir possíveis conexões entre personagem e leitor/a. O exercício é também este de tentar atrair o/a leitor/a para imaginar a experiência do voo interrompido. Por vezes, sofremos quotidianamente ameaças e ataques contra os nossos sonhos e projetos de vida, correndo o risco de parar no meio do caminho. Curiosamente, um pássaro encontrado morto na rua pode ser um canal de reflexão para estimular a continuação da viagem. Muito obrigado pelo feedback.
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Um texto vívido ou vivido? Não importa, pois o mais importante é viver.
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Quanto à narrativa, espero que os leitores a considerem vívida. De realidade há o encontro com o pássaro. O mais é imaginação.
Sim, o mais importante é viver, mesmo que, por vezes, a experiência esteja circunscrita ao campo literário.
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