Ah, tu achas que fui grosseiro com ele? Sério que tu achas isto? Sinceramente, eu penso que não. Não me venhas acusar de nada, antes de saber os detalhes do evento. E tu duvidas de que foi um evento? Tu não estavas naquela sala, com aquele homem totalmente estranho para mim. Quem era? Ah, tu queres saber quem ele era? Eu lá sei. Sinceramente, eu não sei nada sobre ele. Ah, sei, sim, que ele era bem estranho.
Começou fazendo-me umas perguntas sobre a minha vida. Parecia bem curioso. Perguntou o que eu fazia, digo, com o que eu trabalhava. Eu disse que ensinava numa escola de idiomas. Quis saber, então, desde quando eu exercia a profissão. A minha idade também. Ora, como a pessoa pergunta a idade num primeiro encontro? Aí é demais. Brincadeirinha boba minha, mas ele já deveria ter esta informação. Depois, ele veio com umas questões descabidas. Sim, na minha opinião, bem descabidas.
Ele queria saber da minha intimidade. O quê? Tu nem imaginas? Adivinha. Ele quis saber se eu tinha uma vida sexual ativa. Ah, achei bem estranho isto. Se ele estava interessado? Ah, eu não sei, mas que ele insistiu nisto ele bem que insistiu. Perguntou se eu morava sozinho? Se morava com a minha família? E eu bem que achei estranho. Tentei subterfúgios para não responder, mas sem êxito. Eu, por fim, respondi assim: “Ativo, passivo, participativo! Sou solteiro e bem versátil.” Acho que ele se assustou. O que tu estás dizendo? Não penses que eu estava me oferecendo. Ah, não me venhas com as as conclusões precipitadas. É claro que eu não estou pulando a cerca. Isto aconteceu há alguns anos. Agora é a história é outra: tu sabes que estou comprometido. Ele deveria estar interessado no meu estado civil. Mas, então, por que não foi direto ao ponto? Era só perguntar se eu era solteiro. Mas não. Ele não fez isto. Preferiu saber se eu era ativo… sexualmente falando.
Deixa-me continuar… Eu estou sendo sincero. Tu não acreditas em mim? É sempre assim: eu conto o que acontece comigo e, em seguida, tu vens dizer que é mentira. Tudo bem, não é sempre, mas é quase sempre que tu me julgas equivocadamente. Então, queres que eu te conte a história?
Naquela tarde, ao sair de casa, a minha grande expectativa era a de encontrar alguém minimamente atencioso e que me pudesse ajudar. E, assim, eu fui direto aonde eu presumia que encontrasse esse alguém. No entanto, não foi bem isto o que sucedeu.
Eu estava apreensivo já há alguns dias, pois eu sentia dores na lombar, nas pernas e em algumas articulações. E não creio que essas dores tivessem relação com a minha vida sexual. Por isto, considerei algumas perguntas inoportunas.
Aquela tarde não começou bem, desde o momento em que me dirigi à recepcionista e solicitei uma consulta com o doutor Silva. Ela disse que ele não se encontrava, mas que havia outro no seu lugar. Eu não gostei nada daquilo. Ora, por quê? Porque eu já estava acostumado com doutor Silva, que sempre me ouvia, examinava, diagnosticava e, se fosse o caso, medicava adequadamente. Então, não havia motivos para eu mudar de médico.
Mas, naquela situação, fazer o quê, né?! Você voltaria para casa, sentindo dores? Ao menos, não seria nada recomendável. Eu, então, resolvi ficar e tentar, mesmo não gostando de encontros às cegas. Ah, por favor, não me entendas mal, mas, para mim, uma consulta médica é como escancarar a sua vida para outra pessoa. E essa outra pessoa detém muitos poderes, pois toma decisões cruciais para manter a nossa vida ou, dependendo da situação, para agilizar a nossa morte. Como eu desconhecia o médico novo, eu considerava aquele um encontro às cegas.
Bem, lá estava eu esperando a minha vez, que quase não chegava. Em geral, é assim que acontece: dez, vinte, trinta minutos… às vezes, uma hora de espera para pouquíssimos minutos de consulta.
A vez chegou. Entrei. Aquelas perguntas de que te falei. As respostas que eu dei. Parecia que o doutor que nem o nome eu sei não estava nem aí para as minhas dores. Achei que ele não demorou nem dez minutos para decidir sobre o que eu deveria tomar. Entregou-me um folha. Era a prescrição médica. Eu olhei-a. Não entendi nada do que estava escrito. Então, eu pedi para ele me explicar o que estava escrito ali. Ele olhou para mim e disse: “Eu não tenho todo o tempo para você.”
Depois de escutar aquilo, o que é que tu pensas? Que eu deveria ficar caladinho e ir direto à farmácia, onde, segundo o mesmo doutor, um profissional saberia ler a sua letra? Eu só me levantei da cadeira e dirigi-lhe a seguinte questão: “Quem lhe disse que eu quero todo o seu tempo?” Retirei-me da sala e retornei à recepcionista, a quem fiz queixa.
No outro dia, lá estava eu de novo. Para quê? Por que eu voltei lá? Lembra-te de que preenchi uma reclamação contra o médico? A recepcionista comunicou-a ao dono da clínica. Ah, tá, tu estavas lá? Não, mas pensas que retornei a fim de brigar com o dono da clínica ou com a clínica toda, né isto? Por favor, tu deverias saber que odeio confusão. Não rias, pois é verdade.
Tu não crês? Foi o próprio dono que solicitou a recepcionista para contactar-me. O que ele queria? Ah, ele também era médico e pretendia compensar o fiasco da consulta do dia anterior. E o doutor Silva? Continuava ausente. Eu sei que era outro encontro às cegas, mas o que eu poderia fazer? As dores persistiam. Se correu tudo bem dessa vez? E as perguntas que esse me fez? Ah, ficaste curioso, hein?! Mas, aí, vai ficar para a próxima. Vou ter de ir agora, pois tenho consulta marcada.
Reblogged this on O LADO ESCURO DA LUA.
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Anísio, mais uma vez, muitíssimo obrigado pela partilha e ajuda na divulgação. Abraço grande.
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Gosto muito do que vc escreve. Divulgarei sempre. Posso?
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Esteja sempre à vontade. 😀
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Acho que o facebook vai organizar uma petição online contra o tal médico. Que curioso!! Ele não tem medo… 😛
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Murilo, seria interessante pensar essa cena do Facebook. Afinal, o Facebook tem medo até de um peito que amamenta. Então, não duvido que “caçassem” o tal médico (ou que cassassem os seus direitos de clinicar) e a mim também. 😀
Obrigado por partilhar o texto no Facebook! Ajuda-me a divulgar e a interagir com leitores possíveis, digo, aqueles/as que se encontram fora da blogosfera, já que eu estou fora do Facebook. Obrigadoooo…!
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Cássio, os teus problemas com os médicos persistem. 🙂
Li o teu texto três vezes, com intervalo, e andei a pensar. Claro que o ler várias vezes nada tem que ver com a dificuldade de compreensão, mas sim com a vontade de agarrar melhor vários aspectos.
Vou elencar o meu comentário por pontos, independentemente de estarem ou não ligados. Questões que me ocorrem, é isso.
1 – A curiosidade excessiva, médica ou não, sobre o comportamento sexual, é coisa que me aborrece terrivelmente. E explico já que denomino de excessiva quando ela não está na mesma medida de outras informações que têm que ver com a saúde e bem-estar. Salvo, quando tal se justifica, quando se trata de um problema de natureza sexual.
E aborrece-me terrivelmente porquê? Porque eu não gosto que o sexo seja banalizado, também ao nível do discurso, que continua a ser tão utilizado para ferir, indo ao nervo da intimidade. Por vezes, o sexo que se presume que alguém tenha ou não, é utilizado para escavar ou como arma. Dou um exemplo passado comigo. Uma vez, assim a fingir que é como quem não quer a coisa, um homem meu conhecido disse-me: “Isso de andares a treinar tanto no ginásio deve ser falta de sexo.” Correu muito mal. Para ele, claro. Porque teve que se sujeitar a ouvir uma série de coisas para o pôr no sítio, a que foi anexada a proibição de repetir tal parvoíce.
2 – Relativamente a um paciente que se queixa de dores na lombar, pernas e nalgumas articulações, é difícil de entender que o interrogatório seja tão insistente na questão sexual. Alimentação, exercício físico, posições adoptadas frequentemente… Não interessa?
Já lá vão muitos anos que um médico, já falecido, me contou que costumava indagar os doentes, mais os homens, sobre a vida sexual e tirava ilações sobre a frequência que diziam ter relações sexuais. Foi uma coisa que nunca me saiu da cabeça porque a especialidade não levaria a que no primeiro impacto tal fosse determinante e porque tais ilações me parecem perigosas e desinteressantes.
3 – O que é uma vida sexualmente activa? A sério, expliquem-me.
Até o google anda às aranhas para amanhar algo de jeito.
Tanto se fala da parte de tomar iniciativa e, claro, lá vêm essas categorias de activo, passivo, participativo. Como se fala do número de vezes que se tem relações sexuais, isto começa logo a cheirar-me a contabilidade a juntar aos activos e passivos dos livros de mercearia, como até se fala do número de parceiros ou interesse em mais que um.
Só uma curiosidade que ainda não entendi neste universo contabilístico: a masturbação conta ou não? Mais: a masturbação, se contar, conta na mesma medida se praticada a sós como na presença de outrem?
4 – A não ser em consultas da especialidade de ginecologia e obstetrícia, nunca fui questionada sobre a minha sexualidade, embora tivesse falado dela noutra especialidade porque quis e na medida em que quis e julguei precisar.
Por acaso já tinha imaginado um cenário de um médico a perguntar-me se sou sexualmente activa. Pedir-lhe-ia que me definisse o conceito e aproveitaria para tentar esclarecer as dúvidas do ponto 3.
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Isabel, fazes-me enxergar pontos que estes textos – alguns deles, por vezes, escritos sem muita pretensão para além do registo narrativo – podem abordar. Gosto muito da tua leitura.
Raramente a sexualidade é o centro das minhas consultas médicas, mas, infelizmente, dessa vez o foi. Digo-te raramente porque não descarto aqueles momentos em que se faz mais do que necessário tocar no assunto. Concordo contigo: algumas pessoas intentam usar a sexualidade como arma para atingir e desmoralizar outrem. Quando isto me acontece, eu tento usá-la como arma de defesa, de resistência e como recurso discursivo para desmascarar o profissional preconceituoso e despreparado que se encontra à minha frente. Realmente penso que há muitos médicos despreparados para lidar com o ser humano, com a complexidade deste.
Quanto ao médico que citaste, fiquei curioso por saber que tipo de ilações ele fazia a partir das informações fornecidas pelos pacientes. Seria possível que o seu interesse na vida sexual dos seus pacientes fosse uma estratégia para (não) enfrentar algum problema pessoal ou para (não) se dedicar à própria vida sexual?
Quanto à masturbação, também não sei se especialistas a consideram na hora de qualificar uma vida sexual como activa ou não. Interessante ponto levantaste, pois, por vezes, um indivíduo pode satisfazer-se sexualmente muito mais com a masturbação do que quando acompanhado.
Quanto ao comentário feito por um homem conhecido teu, acho muito bem que lhe tenhas posto no devido lugar. Um tanto grosseiro, agressivo e machista o comentário do rapaz. Que ideia é essa que algumas pessoas têm de pôr sexo no centro de tudo e de todos? E ainda o fazem de modo indevido, gratuito e até nocivo ao próprio sexo.
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Cássio, primeiro quero deixar bem claro que o caso que citei apenas chega por mim a uma plataforma de acesso público porque se trata de alguém morto e mesmo assim sem qualquer tipo de identificação. Nos meus escritos, quer em postagens como em comentários, o que existe como alusão a alguém de verdade (pois, há personagens que invento e que se podem a assemelhar a pessoas do meu mundo real) é sempre com consentimento.
Tive necessidade de dizer isto para afastar qualquer eventualidade de pensamento associado a devassa.
Sou muito escrupulosa, esquisita mesmo, com estas coisas. 🙂
E tenho a dizer-te que és perspicaz.
Ao longo do tempo, e porque não foram conversas em contexto de consultório, apercebi-me e tive a confirmação de que existiam problemas pessoais dessa natureza, que nunca foram ultrapassados por motivos associados a uma educação muito rígida e ao ‘estatuto’ advindo da pertença a uma classe social considerada alta. Do ponto de vista sociológico é muito interessante estudar casos como este, que afinal continuamos a encontrar, embora com roupagens diferenciadas.
Perguntaste-me pelas ilações. Pelo que me apercebi, o assunto girava muito à volta da frequência e da iniciativa por parte do homem. Uma vez por mês não é nada, todos os dias é tara, com o período por amor de deus (uma rejeição que continua a admirar-me em homens da minha idade, alguns claro), uma ou duas vezes por semana parece que cai bem… Como te disse no primeiro comentário estas contabilidades aborrecem-me. Para mim, nada disto é compatível com uma vida afectiva saudável, que preenche, que se importa com o desejo. O sexo não é para fazer, como se de uma empreitada se trate. O sexo é para acontecer.
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Isabel, disseste bem: “O sexo é para acontece.” Gostei da crítica comparativa à caderneta de bodega, de mercearia. 😁
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