Pão, café, leite, ovo, queijo, mamão… O que é que você quer? Ops, o que gosta de consumir como primeira refeição do dia?
Dormira eu na casa dos meus pais. E lá o amanhecer é, em geral, um pouco agitado. Antes das 7h, a minha mãe e a minha cunhada saem para o trabalho, acompanhadas pelo meu sobrinho, que vai à escola. Então, a partir das 6h, começam-se os preparativos do café-da-manhã. Enquanto um esquenta a água, a outra faz umas tapiocas ou estala uns ovos… e assim vamos. Sentamos à mesa. Percebe-se certa pressa para que ninguém chegue com atraso ao seu destino. Logo, os lugares são ocupados, com frequência, em sistema de rodízio: um senta; outro levanta; um chega; outro sai. Isto ocorre paralelamente ao uso do banheiro ou ao tempo que alguém gasta para vestir-se. O dia já começa acelerado.
Depois que todos saíram, fiquei sozinho a beber o meu café. Entretanto, uma parente que reside nas redondezas apareceu sob a justificativa de que queria me ver e matar as saudades. Acomodada à mesa, puxou conversa sobre isso e aquilo, até que o bip do seu celular apitou. Era uma mensagem de whatsapp.
— Ei, Cássio, escute aqui essa. — Dito isto e sem me dar a oportunidade de recusar a sua oferta, a visita inesperada começou a ler da tela do seu telefone o seguinte texto: “Ei, Janaína, mulé, você é doadora de órgãos, é? — a mulher perguntou. Então, Janaína disse que sim. Aí, a mulher continuou: — Então, mulé, é que eu tô precisano fazer um berrante.”
Concluiu a leitura com uma gaitada que quase me deixou moco. Eu, calado. Então, observando que fiquei sério e em silêncio, inquiriu-me:
— O que foi, Cássio? Não gostou da piada?
— Mas qual foi a graça?
— Ah, você não entendeu não, foi?
— Entender o quê?
— Aff, você não entendeu que a mulher queria dizer pra outra que o marido dela tava botando chifre nela?
— Não. — Ela não esperava resposta tão lacônica. Mas, sinceramente, o que eu deveria dizer? Será que deveria expressar todo o meu desconforto ao escutar a tal estória? Não compreendia por que ela ria de uma narrativa que, a meu ver, colocava uma mulher numa situação de vulnerabilidade numa sociedade em que o sistema patriarcal opera nas mais diversas instâncias da vida. Para mim, Janaína, personagem da estória, representava mulheres que, não raramente, protagonizam situações socialmente embaraçosas e em que ocupam posições hierarquicamente inferiores aos homens; e isto não porque escolheram tais histórias, mas porque são forçadas.
Em consequência disto, piadas sexistas e machistas são proferidas por homens e mulheres sem que se percebam como algozes ou vítimas de práticas que vão além do campo discursivo. Para mim, o efeito perverso da anedota contada é pôr a mulher no centro de uma narrativa que a desmoraliza e fragiliza enquanto uma das partes integrantes de uma relação conjugal. E, ainda, ela é caracterizada como a parte fraca, a parte que é lesada e que é ainda troçada por uma semelhante, uma mulher que é considerada inteligente por usar uma metáfora pobre com a suposta boa intenção de alertar à amiga sobre a traição cometida pela parte forte da relação. Então, será que eu deveria questionar por que o homem adúltero não era motivo de chacota? Por que a mulher traída é duplamente desmoralizada? Aludo ao facto de, na estória, Janaína ser desrespeitada pelo marido e pela amiga que a expõe publicamente.
É o sistema patriarcal que naturaliza diferentes tipos de violência contra as mulheres. Sim, diferentes tipos de violência, pois há quem acredite que uma mulher só se encontra na condição de violentada quando essa é vítima de agressão física ou estupro. Entretanto, no Brasil, a Lei Maria da Penha compreende que o deboche público também se caracteriza numa forma de violência psicológica contra mulheres. Será que eu deveria estender a conversa e tentar convencer a minha interlocutora de que, se Janaína existisse de facto, o autor da piada e todos aqueles que a divulgavam incorriam numa infração à Lei nº. 11.340/2006, pois expunham a vítima a uma situação de humilhação pública? E, ainda, aquela “piadinha besta” causava males não somente à Janaína, mas também a outras mulheres, quando narrativas desse tipo, verdadeiras ou ficcionais, normalizam a traição como direito do homem? Será que eu poderia… será? Ou melhor seria voltar ao meu café com pão?
Desjejuar é, para mim, a chance de iniciar a preparação para enfrentar os desafios que o dia me proporcionará. Daí, penso bem naquilo que como e como o faço. Ao menos, quero fazê-lo com tranquilidade, sem alvoroços e sem energias negativas ao meu redor. Por este e outros motivos, evito assistir a certos jornais ou programas de TV matinais, por exemplo. Geralmente, em paz, tomo o meu café e ingiro algo mais.
Entretanto, como nem sempre se está em casa para manter esse privilégio, o insólito acontece e algo indigesto pode integrar o cardápio da manhã. E foi isto o que me ocorreu noutro dia.
— Valha-me, Cristo. Tão fácil, piada tão besta, e você não entendeu. Tô bestinha, viu?! Tu estuda tanto pra quê, hein? Com que se faz berrante? Sabe não, é? Com chifre, menino, arriégua!
Calado, voltei à minha xícara, tomei um gole do café e mordi o pão seco, mas, durante todo o dia, percebi-me entalado com aquela piada infame.
Maravilhoso texto. Parabéns!
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Alegra-me que a Fran tenha apreciado o texto. Muito grato pela leitura e pela visita ao blogue, Fran.
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Eu que agradeço. 😊
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Cássio, levantas várias questões ou provocaste-me a levantá-las, que, por exigirem maior reflexão, agora vou apenas elencar algumas mais imediatas. Depois, conforme o retorno e o que mais me surgir, poderei voltar “à vaca fria”.
1 – O pequeno-almoço também é para mim uma refeição que gosto de tomar descansada. Confesso que me custaria se tivesse que me adaptar a grande movimento e conversa a essa hora.
Embora num contexto completamente diferente, fizeste-me lembrar o café com leite da colónia de férias que frequentava em miúda.
2 – Reparei que utilizaste “estória” e “história”. Qual a diferença? Ou melhor, em que é que para ti se diferenciam?
Às vezes apanho “estória”… Julgo que lhe atribuem menos importância que a história.
Eu nunca utilizei “estória”. Por acaso não sei se consta no dicionário.
3 – Sim, eu teria expressado o desconforto e teria questionado a situação do adúltero. Mas isso sou eu que me habituei a lidar bem com aborrecimentos e, por vezes, afastamento de pessoas pelo facto de se manifestar uma opinião contrária e de ‘cortar as vazas’ em situações de chalaça a que normalmente se dá umas risadas porque o grupo procede assim.
Falas e bem da violência psicológica… Mais difícil de provar, sem dúvida.
4 – Há um tempo ouvi um homem de sessenta anos dizer o seguinte: “Se fosse para a minha mulher ter outro, preferia que fosse ele a vir ter com ela, a roubar-ma, do que o contrário. Era sinal que tenho uma mulher boa e não ela que não me queria”. Pois, o estúpido não percebe que se trata da mesma coisa, nem se trata de quem vai ter com quem porque umas vezes será um, outras será a outra pessoa. A realidade é que ela passaria a querer outro e não a ele.
5 – Repara em certos detalhes ao nível da linguagem.
Diz-se muito “a minha mulher” e pouco “o meu homem”.
Gosto da expressão “o meu homem”, caso ele utilize o oposto, mas já houve mulheres que troçaram de mim por pensar assim.
6 – Embora o controle social continue mais apertado para o lado das mulheres, em especial no que respeita aos padrões de relacionamento e à forma de lidar com o sexo oposto, ao nível de sociedades como a nossa essa questão está mais esbatida.
Nos meandros da traição, continua a ser muito comum que a mulher do homem que trai ser vista pelos outros como culpada, “Se calhar ela não lhe dava assistência… claro que ele teve que arranjar outra.” Frases como esta ainda se ouvem muito.
7 – As mulheres são particularmente contundentes com as outras. Não sei se os homens, entre eles, são assim. Parece-me que não são tanto.
Mais, e digo isto com segurança e conhecimento de causa: as mulheres são especialmente contundentes, de ir ao nervo, em relação a outras que tenham passado ou estejam a passar por situações adversas associadas a relacionamentos, a formas de estar em público, à interacção com os homens, à apresentação (vestuário, etc.), a experiências que de algum modo ‘mexam’ com sexo.
Já tenho pensado se, inconscientemente, à medida que a mulher reclama igualdade e maior liberdade no ´departamento´sexual, não deseja ao mesmo tempo que as outras pudessem tornar-se assexuadas.
Atenção: quando falo em homens e em mulheres, refiro-me a generalidades ou a segmentos expressivos.
8 – Eu sou uma defensora acérrima da exclusividade ao nível dos relacionamentos amorosos. Daí que não haja em mim qualquer vontade de desenvolver compreensão em relação a quem não respeita as regras, quer seja homem ou seja mulher.
Por isso admito que se me visse envolvida num diálogo daquela natureza, fosse especialmente dura.
Percebo perfeitamente e sei que podem surgir problemas, que as pessoas não correspondam ao esperado, etc…. Resolvem.
Se vierem com o argumento das relações abertas, aí o filme é outro e a traição não encontra terreno para germinar.
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Isabel,
Agradeço-te imensamente pela leitura. Gosto quando gero questões e quando tu e outros amigos mas geram.
Tentarei contemplar os pontos que me arrolaste e, por isto, também os enumerarei:
1 – Confesso que, há muito, usava “história” para tudo, digo, para aludir a todo e qualquer tipo de narrativa baseadas em factos ou não. Percebi que “estória” caíra em desuso, embora os dois vocábulos existam e tenham acepções distintas. No Priberam, “estória” possui como acepção “narrativa de ficção, oral ou escrita”; “história” é mais para narrativa baseada em factos, mas não somente, pois também pode compreender enredos ficcionais. Na “Indigestão no café-da-manhã”, optei por uma discriminação escorreita dos termos a fim de “jogar” com a possibilidade de a narrativa sobre a Janaína ser fictícia, mas que, entretanto, corresponde a tantas histórias por aí.
2 – Quanto à expressão do desconforto, raramente me resigno ao combate, mas, desta última vez, decidi calar-me, porque vi que, em outras ocasiões, de tantas piadas que passei a questionar, muitos incomodaram-se com as minhas intervenções, quase me voltando as costas.
3 – A violência psicológica é difícil de comprovar, mas penso que, infelizmente, seja a mais exercida no quotidiano de algumas relações afectivo-sexuais. A expressão “minha mulher” – que citaste – tomo como uma possível prova do exercício de poder que alguns (geralmente homens) pensam deter sobre o cônjuge. (Numa relação menos assimétrica, cairia bem ou sem tantos estranhamentos o uso de “meu homem” e “minha mulher”!). E, como nos lembraste da contundência com que mulheres são tratadas, mais exercício de violência psicológica vê-se aí.
4 – Esta é boa para debate: “à medida que a mulher reclama igualdade e maior liberdade no ‘departamento’ sexual, não deseja ao mesmo que as outras pudessem tornar-se assexuadas”?
5 – Para concluir (só por enquanto!), fiquei curioso para saber como eram os seus pequenos-almoços nas colónias de férias. Dar-te-ia um bom poste, concordas?
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Cássio,
Relativamente ao uso de “estória” e “história” era essa a ideia que tinha. De facto, nunca me tinha interessado por pesquisar.
E agora fico com mais certezas em relação a muito uso inapropriado de “estória”. Talvez esses casos correspondam apenas a intenção de diferenciação de estilo.
Pois, é uma ideia um dia destes relatar pedaços de vida (!) passados na colónia de férias.
Raramente escrevo sobre a infância e a adolescência, mas talvez um dia destes (te) conte sobre o pequeno-almoço da miudagem. 🙂
Do que me é dado a observar e da minha experiência, tenho a sensação que se mudou muito pouco em termos do escrutínio social sobre as relações afectivo-sexuais, em especial das mulheres, havendo maior controle entre elas.
Acho incomodativo e perturbador ser manifestada uma especial curiosidade sobre essa área da vida dos outros e que o facto de haver pessoas que se reservam no núcleo de amigos poder ser motivo de conflito. Por exemplo, entre duas amigas é corrente ser mal aceite o facto de se saber que uma tem uma relação que (ainda) não é assumida publicamente e não ter contado. Isto é até visto como traição entre amigas, traição da confiança.Isto vem entroncar no que são as relações de amizade e o que se espera delas. Para mim há uma grande nebulosidade à volta da dificuldade de aceitação que existem, ou podem existir, segredos, de uma ou ambas as partes.
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Também percebo essa pressão por explicitar a sexualidade nossa de cada dia. Penso que essa pressão pela produção linguageira sobre a vida sexual gera, contraditoriamente, um tipo de repressão.
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Emotivo, elucidativo, politizado, humorado. Um texto completo! Parabéns!
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Obrigadoooo… Demorou, mas saiu. 😀
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Reblogged this on O LADO ESCURO DA LUA.
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Contente que tenha gostado do texto, Anísio. Mais uma vez grato pela atenção.
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