Chegamos ao Chico após a hora do almoço, mas tínhamos posto quase nada na boca. Éramos cinco: Gabi, Marilu, Marcos, Sandro e eu. Mal entramos na casa, logo saímos. Afinal, com fome e sede, o Bar da Rosa seria o nosso destino. No caminho passamos pelo centro da cidade para sacar dinheiro. Esbarramo-nos nos cartazes “Estamos em greve”. A greve dos bancários prolongava-se à medida que os patrões evitavam o diálogo e a negociação. Isto obrigava-nos a perambular pelo coração da cidade, à busca de um caixa eletrônico disponível.

Já estávamos quase a meio da tarde. Mais cedo, entretanto, teríamos sido envolvidos pela confusão harmoniosa dos corpos que mesclam na encruzilhada da multidão, com os seus suores, cheiros e sons. Já me imaginava passando por um corredor estreito entre uma tenda e outra. Sentia o peixe roçar o meu antebraço, fazendo cara de nojo com a ideia de estar a feder não somente a região atingida, mas braço, mão, perna, tudo. Logo em seguida, a um ou dois metros do animal atrevido, desviava da vendedora que carregava sobre a cabeça um saco enorme e pesado, cujo conteúdo lhe era a garantia do sustento da semana.
Serra, traíra, tilápia… tudo bem fresquin. E, se quisé, descamo e tiro as tripa agora mermo. Vai querê? Beiju, tapioca quentinha, pé-de-moleque… e ainda um café feito na hora. Venha aqui, meu patrão, chegue. Agora, não, chefe, depois passo aí. Vou ficar esperando. Oh-povo-o-ó. Num é não, menina? Esse povo num compra porra nenhuma. Tudo liso. É a crise, mulé. Olhe a banana da terra, banana maçã, banana prata. Comé-é-qui-é? Vai querê a banana ou num vai? Cebola, tomate, pimentão, tudo por… Já tem a mistura pro almoço? Ei, amiga, promoção de calcinha e sutiã. Quer dar uma olhada? Olhe a manga matuta. Olhe o alfenim bem docin… Aproveite que a promoção é só hoje. Tacabano, viu? Taaacabaaaanu, tô dizeno, tacabanu. Dez cebola por dois real, querida! Aproveite, comade. Baratotal.
As eleições municipais a suceder no dia seguinte davam um toque especial àquela alquimia de perfumes, sons e cores. Da feira restavam vendedores a desmontar barracas, compradores atrasados a tentar a sorte na hora da xepa, lixo amontoado à beira das calçadas, gatos e cachorros a farejar as vísceras de algum bicho morto e, assim, garantir a refeição do dia.
Era 1º de Outubro de 2016, sábado, dia de feira em Macaíba. Pessoas agrupavam-se numa casa comercial, a fim de acessar a sua conta bancária num terminal eletrônico. Marilu, Gabi, Chico, Marcos, Sandro e eu rapidamente compusemos o rabo da fila, posição que não demorou a ser ocupada por outros indivíduos.
A rua ainda estava agitada. Mas, infelizmente, já desmontavam a feira, o evento sabatino mais famoso do município. Já se vão mais de cem anos, milhares de sábados. E isto graças a um tal Fabrício Gomes Pedroza, como contam os historiadores que, para explicar o surgimento da feira de Macaíba, remontam ao despontar da segunda metade do século XIX1.

Aguardávamos a vez na fila e inevitavelmente pensávamos em que partido aqueles homens e mulheres votariam. Se perguntássemos, talvez recebêssemos como resposta “Não voto em partido, voto em pessoas”. É assim mesmo: quem vê cara não vê partido. Talvez isto explique os resultados a serem revelados ao fim do domingo: a direita avança no mundo. Como convencer alguém do contrário? Digo: como convencer das conquistas que obtivemos nos últimos anos e da importância de não votar em alguns partidos? Como explicar a um eleitor sofrido e bombardeado por uma mídia de massa corrupta que não existe candidato sem um grupo político por trás, sem um partido e sem propósitos ideológicos?
A fila andou e chegou a vez de cada um. Deixamos a política de lado, ao menos por uns instantes. Éramos poucos para enfrentar os recrutas da politicagem que, do lado de fora, distribuíam santinhos de candidatos, seguravam bandeiras, vestiam a camisa de muitos daqueles que não nos escutam e que não trabalham por nós nem para nós, os seus possíveis eleitores. E, afinal de contas, o dia era de alegria.
Com o suficiente em mãos para “forrar o bucho e molhar o bico”, partimos em direção ao Bar da Rosa. Lá nos deliciamos com patê de siri, tapioca e cerveja bem gelada. O papo correu solto. Memórias do fundo da caixola revelaram-se a torto e a direito. Depois daí, visitamos o Engenho do Ferreiro Torto, um dos marcos históricos norte-rio-grandenses.
E, assim, a tarde transcorreu sob o calor de uma amizade de mais de uma década. São as boas recordações que alimentam as saudades e vontades de encontros futuros.
Notas:
(1) Informações históricas sobre o município de Macaíba/RN são encontradas em História e Genealogia, de Anderson Tavares de Lyra: «www.historiaegenealogia.com». Nesse blogue, há uma entrada dedicada à feira (Clique aqui.). Pormenores sobre a constituição de Macaíba como polo comercial norte-rio-grandense ainda na segunda metade do século XIX também são disponibilizados em Feira de Macaíba/RN: um estudo das modificações na dinâmica socioespacial (1960/2006), dissertação de mestrado de Geovany Pachelly Galdino Dantas (Clique aqui.).
(2) As fotografias foram editadas conforme o propósito do texto. As imagens originais encontram-se nos perfis de Facebook de Gabi e Marilu Albano, respectivamente.
Faz o urro
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Que urro?
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Cássio, já tinha aqui passado algumas vezes.
Deliciada com o teu texto… e com “forrar o bucho e molhar o bico” a fazer-me sorrir. Lembrei-me de em tempos ouvir uma pessoa dizer que “a sopa serve para forrar o estômago”.
Encantou-me a cadência diferente da dos dias normais, de trabalho. Apesar da preocupação, há festa dentro e boa camaradagem.
E reparo que este post tem uma arrumação diferente… não consigo fazer habilidades destas. 🙂
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Isabel, que bom que gostaste do texto! Ah, a depender da fome, a sopa não me é suficiente para forrar o bucho. Aí, apelo para os pratos alentejanos, em especial as migas, que adoro. 😀
Quanto à arrumação, penso que te referes ao layout do post que, quando lido no ecrã do computador, se organiza distintamente de como surge na tela do telemóvel. Assumo que também fui pego de surpresa, mas fiquei contente com o resultado. Gostei de ver a foto tirada pela Gabi ao lado do texto. O colorido da imagem grande na lateral do ecrã agradou-me muito.
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Em tardes assim, a vida vale a pena, mesmo nas mais assombradas circunstâncias.
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É verdade, Murilo. Embora tempos difíceis fossem vislumbrados, fomos apanhados de assalto com os resultados gerais dos 1º e 2º turnos das eleições. Você, como estudioso da política, bem sabe disto.
Momentos como essa tarde de Outubro movem-nos. 😀
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