“Quem cozinha dos dois?” – quando homofobia e sexismo azedam o dia

“Quem cozinha dos dois?” — ela perguntou-me. Há segundos que mais parecem uma eternidade. Eram os poucos segundos necessários a responder uma questão elaborada de forma simples e direta. Estava ali a interagir com uma colega da universidade, alguém que até poderia considerar amiga e que conhecia a minha situação conjugal com Murilo e, por conseguinte, a minha orientação afetivo-sexual.

Que importância esta informação teria para alguém, além das partes envolvidas num relacionamento, casamento ou como se queira chamar? Será que indagaria a mesma questão a um casal heterossexual? Sinceramente, suponho que não o fizesse e que tomasse por certo de que a esposa — ou namorada, a depender do caso — estivesse com a incumbência de cozinhar, limpar e realizar outros afazeres ditos “do lar”. Presumo isto porque, numa perspectiva heteronormativa e patriarcalista, se entende que o trabalho doméstico fique a cargo das mulheres. As atividades são distribuídas entre os indivíduos com base nas suas genitálias, conforme práticas discursivas e não-discursivas binárias que circundam os seus corpos. Em geral, sobrecarregam quem que tem uma vagina ou quem julgam pertencer ao universo qualificado como feminino.

Eu elucubrava sobre o motivo do questionamento. Falávamos sobre qualquer assunto que não a rotina doméstico-familiar numa ótica heteronormativa. Embora ela tentasse dissimular a sua curiosidade dizendo que o marido também cozinhava, eu não a aceitaria como inocente. Súbita e tacitamente, homofobia e sexismo tornaram-se nos pratos principais de uma interlocução que deveria ser tranquila, gostosa e palatável. Recuso-me, porém, a digerir homofobia, sexismo e outros “ismos” que queimam como pimenta quando entra e quando sai. Ora “Quem é que cozinha” não significa a mesma coisa que “Fulano também cozinha”: nesta oração, há inclusão e partilha de tarefas; naquela, há exclusão e imposição de um trabalho que se considera apropriado para um indivíduo com determinado sexo ou identidade de gênero.

Sentia os efeitos desses discursos desde criança, quando tentava ajudar a minha mãe em simples tarefas, como lavar a louça ou faxinar. Não raramente, observei o desconforto e até temor de homens e mulheres da família que falavam qualquer coisa como “Isto é serviço de mulher.” Este é o tipo de situação comunicativa que revela a estreita relação entre sexismo e homofobia. E ainda denuncia como estes são utilizados para impor concepções de normalidade e anormalidade e, em consequência, projetos de vida que enclausuram muitos de nós. Eu gostaria de ter-lhes retorquido naquela época. Se fosse já muito atrevido, ter-lhes-ia dito “Não cai nada, não. Não é colado com cuspe.” Mas não estou seguro de que me livrasse facilmente daquele assédio. 

Aquele rápido intervalo entre pergunta e resposta — quase eterno na minha mente — conduziu-me a eventos escondidos na memória. Além dos momentos da infância de quando espanava a estante ou lavava os pratos para mamãe, recordei-me de um encontro com a mãe de um ex-namorado meu. Na altura, a minha então sogra soube que o seu filho e eu iríamos morar juntos. Ela perguntou-me quem de nós dois iria cozinhar, porque, segundo ela, o seu filho nada sabia sobre esses assuntos. Percebi ali uma expectativa e pressão para que um de nós assumisse papéis de gênero fixos e determinados tradicionalmente pela sociedade heteronormativa e patriarcalista.

Foi nessa visita ao passado que fui buscar a resposta para a colega acadêmica. A minha sensação naquela altura foi parecida com a que senti recentemente. Não entendia e ainda não compreendo bem este tipo de indagação. Será que os dois não podem cozinhar? Será que as duas partes envolvidos num relacionamento não podem responsabilizar-se, igualmente, pela lida doméstica?

A divisão de tarefas domésticas nada tem a ver com capacidades ou incapacidades inatas de cada um dos corpos-sexuados. Será que toda menina nasce predisposta a gostar de cozinhar? E ainda detentora de habilidades especiais para fazê-lo? É evidente que não. Somos treinados e treinadas desde pequenos para isso ou aquilo. Se uma criança não segue o roteiro que lhe impõem mesmo antes do nascimento, ela é posta sob escrutinação por boa parte da sua vida. É posta sob vigilância constante para “vestir” uma identidade que pode não ser o seu número.

Quem é que cozinha, afinal? Respondi-lhe à queima-roupa: “Quem tem fome!” Ora, se o casal é composto por um homem e uma mulher, ele não deve esperar que ela ponha tudo à mesa para que possa comer. Genitália não é — ao menos, não deveria ser — pré-requisito para trabalho algum. Por sua vez, se o casal é composto por duas pessoas do mesmo sexo, digo o mesmo. A identidade de gênero não deve ser pré-requisito para assumir essa ou aquela função.

Portanto, esta deveria ser a regra de uma casa: divisão igualitária do trabalho entre os cônjuges, independentemente de sexo, de identidade de gênero ou de sexualidade. Sentiu fome? Vá à cozinha, pegue os ingredientes necessários, prepare o prato e sirva-se. Se quiser, faço-lhe companhia, mas sem homofobia e sexismo, porque estes não são temperos e até azedam a vida.

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11 thoughts on ““Quem cozinha dos dois?” – quando homofobia e sexismo azedam o dia

  1. Cássio, embora não possa dizer tratar-se de uma tendência, tenho constatado que a homofobia tem “ligações” muito sub-reptícias e, por isso, difíceis de provar e de denunciar.

    Eu percebo que o modelo adoptado pela maioria, portanto o da heterossexualidade, seja o que causa menos estranheza. Sabemos que as margens suscitam sempre maior curiosidade, para o bem e para o mal.
    Mas já não percebo que se tente “compreender” toda a gente à luz desse modelo.

    Também devido à minha formação académica, tenho participado nalguns diálogos informais sobre este tipo de temáticas.
    Apenas dois exemplos.

    Alguém dizia-me há tempos: “Ela é que é o homem lá em casa.” Explicaram-me, então, tratar-se de um casal de lésbicas.
    Tudo bem. A primeira frase é que é perversa, já que se quer colar o arquétipo criado para o papel homem/mulher num casal hétero, o que de forma subliminar corresponde ao não respeitar aquela condição.

    Recordo-me de ter reparado, agradada, na forma natural, e por isso nada invasiva, como um casal homossexual teve algumas demonstrações de carinho num espaço público. Ao enunciar esse facto, alguém evidenciou desconforto e disse que se sentiria chocado. Frisei tratar-se do mesmo tipo de manifestação que os héteros costumam ter e recebi como resposta “mas devia resguardar-se porque há pessoas que não gostam.”

    Isto para já não falar quando vem a pergunta se gostava de ter um filho, neto ou o que seja, homossexual. Como se a opção sexual de alguém seja tomada para satisfazer o meu gosto ou o de quem quer que seja.

    Também quero dizer isto: nem sempre são os homossexuais que melhor compreendem quem se situa nessa margem. Margem, apenas enquanto minoria, entenda-se. Em número, é o que quero dizer.
    Eu sou hétero e não considero que esteja abaixo nesse nível de compreensão, como felizmente tanta gente.
    Por isso julgo que só deve existir um peso, uma medida.
    Volto ao exemplo das manifestações amorosas em público.
    Se eu vir um casal homossexual a tê-las de forma desproporcionada para o que é comumente aceite para as áreas públicas sinto-me incomodada e desagradada. Mas tal passa-se de igual modo se for com um casal hétero. Contudo, talvez desse mais brado se notassem a minha insatisfação no primeiro caso e levasse logo o rótulo de ter uma atitude discriminatória por estar em causa uma minoria. E não era.

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    1. Isabel, obrigado por trazeres aqui a tua opinião.

      Os exemplos que trouxeste são interessantes. Primeiramente,embora quem sinta tal necessita, vejo essa necessidade de enquadrar-se o arquétipo binário homem-mulher/masculino-feminino/forte-frágil como uma prisão existencial, como um caminho para a infelicidade de muitos. Não devo generalizar. Deverá haver alguém que se encontre ao forçar-se certo estereótipo de género e/ou sexualidade. Poderia não ser um casal de mulheres lésbicas. Imaginemos como sofre um homem e uma mulher que não correspondem a esse modelo. Quanto à expressão do afecto em público, compartilho contigo a opinião de que, independemente da sexualidade de um ou outro, me incomoda quando trocam carícias de modo invasivo, despudorado, desproporcional ao ambiente em que se encontram.

      Concordo que o modelo heterossexual hegemónico já não seja visto e usado como o único para “avaliar” ou “enquadrar” as diferentes maneiras de viver a sexualidade. E isto vale também para os heterossexuais.

      Hoje, percebem-se focos de resistência àquilo que se chama “ordem compulsória sexo/género/sexualidade”. Há um maior engajamento de muitos de nós para repensar os modos de ser homem e de ser mulher em tempos recentes. Fomos estimulados pela emergência dos movimentos de política identitária da década de 1960 e mesmo outros movimentos políticos que ocorriam já durante a primeira metade do século passado. Estes foram muito importantes para a nossa maior liberdade contemporânea, especialmente a liberdade de contestação.

      Entretanto, fundamentalismos “ressurgem” vorazmente na tentativa de cassar os direitos conquistados pelas chamadas minorias. E, por isto, acredito que certas ideologias fundamentalistas que discriminam homens e mulheres devido à sexualidade, género, raça ou outra dimensão identitária sucedem hoje não somente de forma furtiva. Por vezes, temos visto cada vez mais ocorrências de violência verbal e até física. As mulheres têm sido as maiores vítimas.

      Quando tu comentas sobre o nível de compreensão, a capacidade de compreender ou não os desafios por que outros e outras passam não depende da nossa sexualidade. Observo muitos indivíduos homossexuais que não se sensibilizam com a condição por vezes desprivilegiada de outros homossexuais, de mulheres heterossexuais ou não, devido à identidade racial e/ou étnica, à classe social. Falo isto pensando num escalonamento de subalternidades. Noutro dia, contrariei-me com um amigo gay que descredibilizava as mulheres para alcancarem bons resultados no trabalho. Para eles, os deveres com a família atrapalhavam o desempenho delas. Achei o comentário tão absurdo que me recusei a conversar mais sobre o assunto, mesmo registando o meu posicionamento contrário ao dele.

      Os preconceitos estão para todos, de facto. Infelizmente, alguns não conseguem ser sensíveis o suficiente para pôr-se no lugar do outro. Não obstante, longe de demonizar um ou outro, o meu principal objectivo com o post foi, – além de contar uma situação que vivenciei noutro dia -, desconstruir uma fala que aparentemente é inocente, mas que, sub-repticiamente, transporta preconceitos que afectam directa ou indirectamente a nossa vida.

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    1. Marcos, sem dúvida, este e outros títulos são boas dicas de presente e de leitura para todos nós. Desconfio que a colega da universidade deva ter lido Margaret Mead, tomando em consideração a sua área de estudos.

      Entretanto, é interessante pensarmos sobre o quanto enfrentamos de sexismos, homofobias e racismos nas interações quotidianas, independentemente de estas situações se darem em ambientes acadêmicos ou não. Às vezes, ainda me surpreendo com atitudes discriminatórias vindas de pessoas ditas entendidas, intelectualizadas, (in)formadas, entre outros “distintivos”. Mas talvez não deva estranhar tanto quando isso acontecer.

      Muito bom tê-lo por aqui.

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  2. A pessoa que fez a pergunta ainda está na ordem de convivência entre quaisquer casais anterior a revolução industrial. Ou poderia ter sido uma forma de se “aproximar” do interlocutor. Talvez uma reposta como: fazemos as refeiçoes fora ou temos uma lista de restaurantes e fazemos os pedidos poderia ter sindo mais posmoderna.

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    1. Chico, a depender da classe social, essa “ordem de convivência” – para usar a sua expressão – é tão contemporânea dos nossos dias quanto o era em outras épocas. Entretanto, acredito que, apesar de todas as lutas de resistência a tais imposições de projetos de vida, o discurso de espaço privado para mulheres e público para homens esteja hoje disseminado por diferentes classes sociais. E isto tinha e tem a ver com a imposição de uma determinada concepção de família. Mas, como disse, nós resistimos mais, questionamos e apresentamos alternativas a essas ordens de convivência, a esses estilos de vida.

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    2. Quanto à sua sugestão, agradeço-lhe pela ideia da lista. Porém, você sabe que dificilmente eu usaria essa desculpa. Além de ser classista, não condiz com as minhas possibilidades financeiras. Não tenho como na rua todos os dias, a não ser que seja no restaurante universitário ou num baratotal. 😀

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  3. Mais um excelente texto. Fiquei aqui, também, lembrando-me da ordem expressa para eu não entrar na cozinha durante a preparação do almoço e de como isto foi mais um dos atrasos da vida que resultaram em mim, a partir deste tipo de imposição. Digo atraso, inclusive, no sentido literal, visto que aprender a cozinhar e a gerir a vida doméstica fizeram-me um homem autônomo e mais feliz e poderiam ter sido muito úteis na definição de minhas escolhas anos antes, na adolescência.

    Gostei muito de ler o texto.

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    1. Obrigado, Murilo. Concordo contigo: se tivéssemos – ainda crianças – uma preparação para “gerir a vida doméstica”, como bem disseste, seríamos homens mais autônomos e felizes. E penso também que uma educação desse tipo para meninos serviria ao combate às violências contra as mulheres.

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