«Gay.»
Tornei o rosto e vi-o de costas. Já não me olhava. Observou-me tempo suficiente para ler-me e identificar-me talvez com o rótulo mais fácil para si.
Aconteceu-me noutro dia, quando subia uma travessa que liga a Avenida Almirante Reis à Rua do Benformoso, em Lisboa. Ele passou por mim e cumprimentou-me com um “gay“. Poderia ter sido um “paneleiro”, mas foi um “gay“.
Pegou-me de surpresa, realmente não esperava e, se tivesse pensado melhor, se de facto tivesse a chance de interagir com aquele indivíduo, ter-lhe-ia interpelado se ele também o era. Talvez lhe tivesse perguntado se estava tão na cara a minha “gueitude”. Se me confirmasse que estava, eu sorriria feliz da vida. Uma vez fora do armário, não me venham impô-lo de novo.
Porém, nada disse. Houve nenhuma interação para além da sua voz e da minha escuta. Segui para a casa. Fiquei sem saber se aquele “gay” significaria um “Boas-vindas” e um “Sinta-se em casa”, uma vez que sou novo na área, ou se seria um insulto e um aviso do tipo “Cuida-te, que tô de olho em ti”.
Fiquei intrigado. Seria aquela uma expressão de homofobia? Seria uma atração pelas minhas feições confusas para alguns tanto quanto familiares para outros, resultantes da união entre tipos humanos diferentes? Terá sido pela aparência, pelas duas argolas grossas que pendem das minhas orelhas e que me dão um ar distinto e, ao mesmo tempo, ordinário, com a barba preta, fechada e volumosa? Terá ele me achado um “boy formoso” na Benformoso?
De facto, em torno do seu “gay”, só há espaço para ilações. A única certeza que tenho é a de que lhe chamei a atenção. Fui notado por alguém cujo rosto desconheço e que pode estar incomado com a minha presença na Benformoso, mas também pode estar entusiasmado.
Se me tivesse dado a oportunidade da interlocução, indagava-me «Gay?», e ter-lhe-ia eu respondido com brio:
«Bem gay!»
Eu acho que o “gay”, para o rapaz, foi uma tentativa de insulto. Ainda mais, sendo você um homem de beleza tipo moura, tipo indiana, acima de tudo, mediterrânica, acho que ele ele pode ter pensado: “quem é esse boy que vem esfregar a sua liberdade homoerótica na cara desses seus parentes distantes, pobrezinhos de nós, sempre tão oprimidos, tão impedidos de ‘fecharmos’, maravilhosos, pela Bemformoso?!” 🌈😁✨
GostarLiked by 1 person
Murilo, este é de facto um dos primeiros efeitos de sentido a acionar, se penso que são pessoas estranhas e que não andam a cumprimentar-se corriqueiramente.
Seguindo o seu raciocínio, imaginemos que os traços de “beleza moura, indiana e mediterrânica” despertem a atenção de alguém. Partamos daí, e pergunto: então, esse alguém abordaria o objeto do seu desejo com a palavra “gay”? Se sim, por que o faria?
Apesar de haver muito homoerotismo ou, ao menos, o exercício de uma masculinidade mais livre dos padrões da masculinidade hegemônica na rua em questão, a assunção de uma sexualidade que foge aos ditos padrões heteronormativos pode assustar e pode fazer com que alguns se sintam desconfortáveis ou até agredidos, a ponto de provocar reações como aquela. Mas isto é se entendo que já conhecem a sexualidade alheia; no caso, a minha.
Doutra forma, também quero pensar que, independentemente da sexualidade de um, a referida palavra atribuída gratuitamente a um estranho, pode ser a tentativa de desestabilizar o outro publicamente, a pressupor que esse outro se ofenderia ao ser identificado como tal, o que não seria o caso, digo, o meu caso. 🙂
Olha, adorei o “tão impedidos de ‘fecharmos’, maravilhos…”. Ao menos, resistimos, né?! 😀
GostarGostar
Sim, resistimos. Sobre a intenção do outro, vejo neste ato o desejo que se traduz na inveja pela liberdade do objeto daquele desejo. Não imagino que desta interação resultasse qualquer coisa boa, uma vez que está expressão do ‘interesse’, da ‘curiosidade’ é, por si só, perversa.
A nossa resistência, por vezes, é vivida no autocuidado. O que é bem triste, diga-se.
GostarLiked by 1 person
Autocuidade é resistência, que é sobrevivência. É isto: antes a dignidade e a vida que o gozo. lol
GostarGostar
O poder da fala ou do olhar do outro está em nós.
GostarLiked by 1 person
Senhor MS ( 😀 ), eu diria “também em nós”, mas é isso: os discursos atravessam-nos e afetam-nos. Produzimos sentidos através dos olhares e dos dizeres, os quais são nossos e/ou dos outros. 🙂
GostarGostar
Olá Cássio,
Essa rua é multicultural, multirracial… muitos multi!
Guardo boas memórias dos contactos nas lojas, das observações e olhares ao passar na rua… algo associado a curiosidade mútua, ao notar das diferenças, mas sem as adjectivar.
Não creio que fosse dito com a intenção de ofender, de fazer notar uma “característica” (as aspas são para salvaguardar a eventual má utilização da palavra) e estou em crer que já te teria observado e por isso julgou não reagires mal, embora tivesse arriscado.
Por um lado, acho que não se deve fazer esse tipo de referências; mas por outro lado penso que se forem ditas sem tom e atitude de ofensa, podem significar bom acolhimento das diferenças.
Espero que estejas bem!
GostarLiked by 1 person
Olá, Isabel!
O episódio soou-me cómico, ao mesmo tempo em que me intrigou a palavra “gay” jogada ao léu e do passar sem encarar. Daí, resolvi escrever sobre esse contacto que, por vezes, assim como tantos no nosso dia-a-dia, ocorre sem interlocução direta e suscita algumas interpretações.
Tens razão: a Rua do Benformoso é um espaço de confluências, de fluências, na verdade. Gosto muito do ambiente.
Encanta-me retornar à casa, à noite, e ver as pessoas à rua, a falar, a tocar-se. Mesmo pela manhã, ao sair, vejo a multiplicidade de corpos e culturas, o que me faz sentir à vontade, perto do Brasil, de Ghana e em Portugal.
Muito bom ouvir de ti!
GostarLiked by 1 person