Por vezes, duvido muito das saudades que papai me diz sentir. As saudades de ter-me por perto dele e de mamãe. Em geral, telefono e falo com mamãe. Quando ligo, ele nem sempre está em casa, nem sempre está com paciência para conversar.
É raro querer falar ao telefone. Quando isso acontece, uma das primeiras frases que me diz ao segurar o aparelho é “Rapaz, há quanto tempo…”. Pergunta como estou. Começo a falar-lhe e, em fração de segundos, percebo a sua impaciência e mesmo vontade de despedir-se.
Ele pergunta-me como estou. Respondo-lhe “bem”, mas sempre há um “mas”. Não é um “porém”, é um vulgar e monótono “mas”, o qual introduz uma preocupação, um desconforto, uma necessidade premente.
Corta-me: “Rapaz, quero saber como você está.” Para ele, é como se eu usasse a conjunção para tergiversar, para esconder-lhe qualquer coisa, para não falar sobre mim.
“Estou bem, mas muito preocupado com a situação do Lu…” Interrompe-me de novo. Tento completar a frase. De repente, ele precisa de ir atender alguém que está a chamar no portão.
A chegada inesperada de um estranho significa mais do que uma visita. Na verdade, pode não existir visita. Pode, sim, ser o seu ultimato para que eu restrinja o assunto a mim, à minha vida em Lisboa, à minha existência.
Mas como saber de mim sem considerar os outros? Sem ponderar o contexto político em que me insiro dentro e fora do nosso país? Já lhe tentei explicar que não posso desvencilhar-me dos eventos políticos do Brasil e do país onde ocasionalmente resida, além da realidade de outros países, mas… Parece-me que sempre afasta o aparelho do ouvido, antes que eu complete o pensamento.
Mesmo ele, que não aprecia o assunto, não conseguirá fazê-lo, digo, desatar-se da política. Posto que nunca tenha morado noutro lugar que não Mossoró, o quotidiano de papai é afetado por situações que se passam em Brasília, São Paulo, Rio, Natal e outras cidades do mundo. Não há existência que não seja política.
A sua rejeição ao diálogo sobre o tema não ajuda a resolver nada. De facto, piora tudo ou quase tudo. Não lhe permite perceber como o Brasil é visto a partir de fora. Não colabora para que possa receber notícias do filho.
Com frequência, antes de alguém chegar ao portão, papai chama mamãe e incumbe-lhe a tarefa árdua. Sim, parece-me que, para papai, falar com o filho que se jogou no mundo, que vive numa ou noutra margem do Atlântico que não a brasileira e que insiste na conjunção adversativa, é uma ação penosa.
Cássio, tenho a sensação que há mais e maiores dificuldades de relacionamento entre familiares chegados (pais, irmãos,…) do que aquelas que são ditas. Na maior parte dos casos, omite-se ou nega-se que tal sucede por motivos de pudor, porque em termos da nossa vivência em comunidade é melhor aceite que se dêem bem.
Por outro lado, há a tendência para se pensar que ser família serve de chapéu de chuva para tudo, incluindo fazer disparates que lesam os outros para retirar proveito próprio. E como autojustificação costuma vir: “ah, há-de compreender que eu precisava disto ou daquilo; afinal somos família para alguma coisa.” (Sim, digo eu, desde que seja para ter mais cuidado em não pisar os outros.)
Existem três coisas que são péssimas para o relacionamento familiar (e de outro tipo, também).
Uma é a pouca reserva em relação a assuntos de dinheiro e outros bens com muito valor monetário.
Outra é dizer-se pouco o que não se gosta, ou seja, “engolir muitos sapos”, em nome do bom relacionamento, diz-se, mas a verdade é que a médio ou longo prazo dá mau relacionamento. Na mesma linha, é mau não saber ouvir-se o que não se gosta, um não saber ouvir activamente o que não se gosta, é o que quero dizer.
A terceira coisa má é a fraca utilização do princípio: “se não gostava que me fizessem, também não faço”.
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Isabel, desculpa-me a demora em responder-te o comentário.
Não sei se conseguirei contemplar todos os pontos que mencionas, mas tentarei tocar alguns deles neste momento.
De facto, há uma miríade de pessoas em relacionamentos muito dificultosos. Porém, por motivos vários, parecem preferir permanecer numa relação infeliz a enfrentar as causas da sua infelicidade. Isso vale tanto para arranjos familiares quanto para outros tipos.
Creio que, quando se envolve certa noção de família (cristã e pá e pá e pá e pá…), existe quem se aproveite para explorar. Concordo contigo. Digo “explorar”, mas não somente quanto a questões financeiras.
Há quem explore parentes emocionalmente. Entristece-me ver alguns a forçar mães, pais e outros parentes a “engolir sapos” em nome da família. Angustia-me perceber muitas mulheres (principalmente estas) que se anulam ante e devido ao comportamento de filhos e de maridos.
Por enquanto, fico por aqui. E agradeço-te pelo comentário, pois sempre me ofertas algo para refletir.
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Há uma melancolia na constatação de que o assunto política nos afasta das pessoas que amamos, enquanto deveria ser o que nos unisse.
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Por mais que mamãe já tenha lido o texto e me enviado uma mensagem a dizer que não escreva isso sobre papai, também acho que o medo de conversar sobre política tem afastado pessoas que se amam.
E esse distanciamento ainda tem contribuído para a desinformação e a proliferação de notícias que, não raramente, se têm mostrado improcedentes.
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