O primeiro ano de vida

Sábado, 13 de Maio de 2023.

Piloto completou oficialmente um ano de vida.

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25 de Abril não é uma simples efeméride histórica.

Lisboa, abril de 2023, vigésimo quinto dia.

No ano passado e no antecedente, não fui à marcha do 25 de Abril, mas, neste, qualquer hesitação foi contrariada pelos passos decisivos que mais uma vez me levaram à Avenida da Liberdade num dia que não pode ser tratado como uma simples efeméride histórica. Os problemas corriqueiros de uma vida porventura precária não nos podem impedir de celebrar as conquistas de ontem e de lutar para superar os desafios de agora. Novas conquistas virão. Disto estejamos seguros, desde que nos esforcemos para alcançar nem que seja um pouco mais de existência, nem que seja uma nova consciência de nós mesmos, nem que seja um estado de espírito pacificado, nem que seja um alento de resistência e transformação.

Saí para pelo menos ver um pouco da marcha e respirar o 25 de Abril que se renova a cada ano. Não voltaria para casa antes de cumprir a missão. Parti. Entretanto, no meio do caminho havia um pombo. Quando passava pela Rua da Bempostinha, vi um pombo na passadeira, quase à entrada de um prédio, um pouco à sombra. Caminhava com alguma pressa e deixei-o para trás. Mas, mais adiante parei e voltei-me. Ele estava sereno, parecia abrigar-se na última réstia de sombra que lhe seria possível para viver os últimos minutos de vida. Estava muito ferido. Na cabeça havia qualquer coisa como um furo com secreções. Percebi isto, quando retornei e, com algum cuidado, apanhei-o. Levei-o até ao Campo Mártires da Pátria, onde o alberguei à sombra de uma árvore, à margem de um dos lagos. Julguei que não tivesse forças para voar nem mesmo andar. O bicho apressou-se em beber água. Ajeitei-o para evitar um afogamento. Acomodei-o da melhor forma possível e segui o meu caminho.

Estava um dia soalheiro. No Jardim do Torel, muita gente com pouca roupa, a ler, a conversar, a banhar-se na piscina. Entrei por um lado e saí por outro na Rua das Pretas. Quando pus os pés na Avenida da Liberdade, uma emoção forte visitou-me, o peito apertou e tive de segurar-me para não chorar na frente de todos, mesmo estando sozinho. Tem sido sempre assim no 25 de Abril.

Procurei a sombra de uma árvore e fiquei a observar a multidão a vir da zona do Marquês de Pombal como se buscasse desaguar na Praça dos Restauradores. Provavelmente alguém seguiria até ao Tejo. Mudo-me de berma e, sob a luz solar, mesmo com a minha fotofobia, ponho-me a sentir a multidão fluir e fruir.

Em anos anteriores acontecera de imiscuir-me e anónima e solitariamente deixar que os pés me levassem ao som de Zeca Afonso desde um alto-falante, de um carro de som ou das tantas bocas que se juntavam numa coletividade esperançosa de democracia, fraternidade e melhores condições de vida para todos e todas. Sabemos que há sempre desarmonias em meio a mais densa harmonia de um dia como estes. Há gente a olhar para o próprio umbigo e a borrifar-se para o do próximo. Apesar disso, Zeca Afonso parecia conseguir colmatar o espaço deixado pelas descoincidências de feitio, ideologia, procedência que afastariam uns corpos de outros num dia que, como disse, não era nem será uma simples efeméride. O aperto no peito e os olhos a quase transbordar sempre lá estavam comigo.

Neste ano, pus-me à sombra de uma árvore que não era uma azinheira, mas que me abrigou do sol intenso, para de novo sentir a emoção, o aperto no peito e os olhos marejarem. Nunca vi tanta gente num 25 de Abril como neste ano. Muitos atenderam ao chamado para exercer um grande princípio democrático, a liberdade de expressar-se e o dever de resguardar o direito dos outros e das outras de fazer o mesmo. Digo isto a pensar na expressão da voz, mas não só, pois hoje vi grupos a fazerem-se representar e a representar-se através das suas vozes, dos seus corpos e dos seus movimentos. Este direito deve ser exercido e respeitado, sem que, ante a controvérsia e as diferenças de opinião, alguém se incomode e tente restringir a voz alheia, seja batendo na mesa seja esperneando como criança mimada.

Neste ano, em que o dia se fez controverso, este atender ao chamado de ir à Avenida, de marchar, de cantar, de gritar, de ecoar palavras de ordem, desordem e esperança parece-me capital ante uma comunicação social que insiste em flertar com o fascismo. Neste dia de celebração de Abril, jornalistas preferiram ignorar o respeito à democracia e aos resistentes capitães de Abril. Esses preferiram cobiçar quem nega os princípios da Revolução dos Cravos e usa a democracia para nutrir o embrião do fascismo. Talvez por isto também me tenha apressado a alcançar a Avenida da Liberdade neste 25 de Abril. Na televisão a opinião de quem tenta enxovalhar a República estava a ser propagandeada como se fosse uma voz sensata e honesta a acusar de desonesto alguém que nunca fugiu à responsabilidade de cuidar do seu povo e que, por isto, tirou milhares dos seus cidadãos do mapa da fome. Na televisão a opinião de quem anda de mãos dadas com grandes corruptos é propagada como se fosse um tratado anticorrupção. Insistir em ficar na frente do ecrã e contribuir para a audiência de quem contemporiza a renovação do fascismo corriqueiro do dia-a-dia é negar Abril e tudo o que esse gerou para todos e todas nós, indivíduos portugueses e de outras nacionalidades que hoje habitam este país.

Por tudo isso, quando vi gente a pulular em cada canto da Avenida da Liberdade, o aperto no peito deu lugar a uma alegria, a um contentamento, a um alento democrático. Foi o 25 de Abril mais colorido que até hoje testemunhei. A marcha evidenciou-se pela polifonia e pela multiplicidade de cores. É facto que as diferenças e as desigualdades insistirão em separarmo-nos a todos no dia-a-dia, dia a dia. Mas neste 25 ocupámos a ágora, tomámos o espaço público, fizemo-lo coletivo, assumimos a liberdade como nossa e fizemo-lo com ganas de justiça social.

Praticamente todo o tempo que estive na Avenida da Liberdade, fiquei nas proximidades da Rua das Pretas. Fiz umas fotografias amadoras com o meu telemóvel para guardar de lembrança, mesmo sabendo que a memória será a melhor caixa-forte para revisitar esta experiência.

Ao regressar à casa, vi de novo gente com pouca roupa no Jardim do Torel, a conversar, a ler, a beber, a banhar-se de sol e na piscina. No Campo Mártires da Pátria, voltei ao mesmo sítio onde pusera o pombo ferido. Ele já lá não estava. Espero que tenha reunido forças suficientes para andar e voar.

O pai é o mesmo. O que muda é o nome.

Hoje estive a conversar com o meu gato, o Piloto, a tentar explicar-lhe que, afinal, o seu pai não era Ronaldo. Ele, como o faz comumente, olhou-me com um ar esfíngico e como se me dissesse: “Haja paciência!” — compreendi. Então, para quebrar o gelo, disse-lhe: “Afinal, o pai é o mesmo. O que muda é o nome.”

Há coisa de dois dias, consegui entregar o Ronaldo para a esterilização. Era uma meta já de longa data. Nunca soube como ele chegou ao pátio. De início, pensei que tivesse dono, mas vivia sempre por aí, aqui e acolá. Então, cheguei à conclusão de que, mesmo que um dia tivesse havido, atualmente um dono já não existia, pois Ronaldo vivia como gato vadio.

Vadio de facto Ronaldo era. Espero que isto venha a mudar dentro de poucos dias. Estava sempre no cio e sempre disposto a fornicar e sempre fértil. Fecundou a Georgina pela primeira vez, tiveram três, pela segunda vez, tiveram seis, e, pela terceira vez, tiveram cinco. Contabilizando: Ronaldo + Georgina + 3 + 6 + 5 = 16.

Sim, uma família de dezesseis membros e membras, que estava a crescer, a multiplicar-se quase como coelho. Ronaldo não respeitava mãe nem filha. Espero que isto mude. Da segunda cria, havia uma fêmea linda, uma tartaruga, uma tricolor padrão, à qual o Ronaldo não resistiu. Um caso de pedofilia fora da igreja, mas mesmo no ceio da instituição família. Um caso de incesto. O pai fê-lo quando a mãe estava a cuidar dos últimos cinco filhotes, ainda recém-nascidos. A filhota tartaruga, violada pelo pai, foi emprenhada e transportava para lá e cá quatro pequenitos dentro de si.

A família, a colónia cresceria. Seriam vinte, se não fossem os raptos e o aborto forçado. Dos dois primeiros partos quatro filhotes foram raptados, digo, adotados. Ainda bem que o foram! Mesmo que eu tenha sofrido, hoje compreendo melhor a situação e apenas torço para que estejam bem, assim como está o meu filhote, um dos primeiros rebentos do casal. E recentemente a filhota tricolor foi forçada ao aborto e à esterilização.

Depois dos infortúnios e dos fortúnios, a colónia reunia onze. Estava a caminho dos quinze, mas a captura da gatinha tricolor impediu que esta fosse mãe e sofresse as agruras de viver ao léu e sem um cuidador humano responsável. Já eram onze gatos na colónia do Ronaldo e da Georgina. Ainda hoje, dois faltam ser capturados para a esterilização e a desparasitação necessárias.

A operação de controlo da colónia de gatos do pátio já veio tarde, mas poderia ter sido mais tarde e, portanto, pior. Então, mais vale tarde do que nunca. A operação foi posta em prática há poucos dias e está a surtir efeito positivo. Os gatos estão a receber atenção. A colónia está a reduzir-se, digo, a descentralizar-se e — espero eu — a encontrar possibilidades de uma vida digna. A Georgina merece uma vida melhor para si e os seus! Foi para uma associação com os cinco recém-nascidos, que já podem ser adotados por pessoas humanas. Eles merecem.

A tricolor é agora uma mocinha esterilizada e com chip. Daqui a alguns dias, voltará para o pátio e ficará sob os cuidados de uma vizinha. Um bonitinho preto com branco também voltará para o pátio. Espero que, junto com dois restantes, consiga ser adotado por alguém. Ainda me preocupo com a Georgina, mas tranquiliza-me saber que está numa quinta, aos cuidados de gente honesta e humana.

Ronaldo, o emprenhador do pátio, talvez tenha sido a maior surpresa desta operação. Hoje, depois de dois dias que consegui entregá-lo para a esterilização, depois de dias e mais dias a limpar a sua urina ativa e fedorenta, pois nestes dias se encontrava no seu estado natural, no seu cio eterno, a violar a Georgina, a coitadinha, mesmo quando esta se esforçava para nutrir-se para nutrir a prole… Hoje, apareceu o dono do Ronaldo. Sim! O dono! Hum, hum, hum… irresponsável. Veio a dizer que, sim, o gato era seu e que, não, o gato não se chamava Ronaldo, mas, sim, Félix.

cassioserafim.com

Fiquei confuso. E perguntei-me o que fazer depois de um ano a tratar o Ronaldo por Ronaldo, a dizer ao meu filhote e à Georgina isso e aquilo sobre o Ronaldo, a sofrer com a Georgina a ausência do Ronaldo ou à sua indiferença. Agora, vem-me um homem da rua ao lado a dizer que o Ronaldo já era seu, Félix já tinha dono. E agora?

O tal dono do Ronaldo… Ops, tenho-me de acostumar com o novo gato no corpo do antigo. O tal dono do Félix somente se deu conta do sumiço do gato depois de as filhas pressionarem o pai a procurá-lo na vizinhança. Hum, hum… irresponsável. Mas o importante é que, daqui a alguns dias, Ronaldo voltará para a zona. Voltará Félix, com chip em nome do tal senhor, esterilizado, desparasitado.

E o meu Piloto continua a olhar-me com um ar esfíngico. Talvez me queira dizer que nem Ronaldo nem Félix, pois, afinal, o pai tem um nome na linguagem dos felinos. E como não vou mesmo perceber, ele nem se dá o trabalho de dizer-mo.

Entre o pau e o pão de deus: a primeira lição

Tudo azul? Um senhor lançou-me a pergunta noutro dia. Não lhe soube responder. Um sorriso amarelo. Ele esperava de mim uma resposta pronta. Quiçá pensasse que todos os brasileiros a usavam e, em caso contrário, pelo menos, a compreendiam. Eu deveria ter tomado a expressão como um simples cumprimento, talvez algo equivalente a olá, mas eu não sabia disto. Era a nossa primeira lição de língua portuguesa.

Ensinar português como língua estrangeira é um processo instigante e intrigante. Digo isto a pensar nos sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Sempre, antes de iniciar as lições, pergunto ao estudante as razões que lhe levaram a estudar o idioma. Investigo gostos, leituras, algumas preferências e experiências do estudante, para que eu possa organizar a aula a fim de atender às suas necessidades e alcançar resultados a curto e médio prazos.

Tenho-me deparado com pessoas das mais diversas faixas etárias e origens interessadas na língua. Há quem justifique a aprendizagem para valorizar o currículo profissional. Há quem o faça para ampliar os conhecimentos linguísticos e culturais. Há quem o faça porque não tem nada a fazer e, aparentemente do nada, decide matricular-se numa turma das famosas escolas de idioma ou em um curso do tipo aprenda-tal-língua-em-30-dias.

O homem do tudo-azul era estadunidense. Além da língua materna, o inglês, falava outros idiomas. Disse-me que lecionara espanhol no seu país. Nestes dias, reformado, passa a vida a viajar. Era a terceira vez em Portugal. Quanto ao português, falava sem grandes dificuldades e escrevia e-mails curtos sem o auxílio de tradutor online. Conhecia as variantes linguísticas, porque escutava estações de rádio brasileira e portuguesa na sua cidade, no norte dos Estados Unidos.

Na última visita a Lisboa, decidiu tomar algumas lições de português. Contactou-me atempadamente via e-mail. Combinámos de vermo-nos numa padaria popular da cidade. No e-mail, escreveu que gostava muito do pão de deus e do café daquele lugar.

No seu segundo dia em Lisboa, lá estávamos. Era o primeiro de três encontros, que depois se tornaram quatro. O tempo era limitado. Tínhamos de tirar proveito da sua curta estada. Ele disse-me gostar muito da cidade, queria praticar a língua, mas, sempre que as pessoas ouviam o seu sotaque, automaticamente passavam ao inglês, impedindo-lhe de treinar o nosso idioma. Queixou-se disso, argumentando que o bom conhecimento de inglês que muitos portugueses possuem se converte em um obstáculo para estrangeiros que querem desenvolver a língua em um lugar como Lisboa.

Eu preparara uma aula de sessenta minutos, mas deixei-a um pouco de lado, porque logo percebi a sua vontade de falar, falar e falar. Beleza? Eu falo brasileiro. De vez em quando, ele impostava a voz de forma diferente, conforme as expressões que aplicava e que tinha aprendido como sendo portuguesas ou brasileiras. Fogo. Isso é bué fixe. Registou a sua capacidade de imitar sotaques.

Quando afirmo que ensinar português como língua estrangeira é instigante e intrigante, digo-o a pensar em algumas especificidades da aprendizagem e do ensino de línguas. Mas, de modo particular, aludo àquilo que o aprendiz quer consumir. Sim, refiro a língua estrangeira como um produto que, por diversos motivos, é consumido como se fosse um menu de restaurante fastfood, sem espaço para imprevistos e para os sabores diversos de uma língua cheia de vida.

Alguns estudantes estão condicionados a certos chiados, pronúncias, jargões, gírias e outros elementos. O professor deve estar preparado para deparar-se com as expectativas daqueles que, ante a alteração de um simples ingrediente, a língua pode não lhe saber bem. A interação azeda. A comunicação fica com ruído. A aprendizagem não acontece.

O senhor dos Estados Unidos estranhou o “gosto” da minha língua. Não parece o jeito brasileiro de falar, disse-me. A esse jeito chamo sotaque brasileiro de exportação, aquele que se escuta e se aprende a imitar ao assistir às novelas produzidas por dois grandes canais de televisão do Brasil. Certamente, era o sotaque que ele acostumara ouvir.

O ato de lecionar é uma tarefa desafiante, edificante e, quando somos bem remunerados e atingimos os nossos objetivos com bons resultados, compensadora. Isso vale para qualquer matéria. Cobro dez euros a hora. Considero barato, consideram barato. Já se ganhou melhor. Porém, a levar em conta a concorrência e o mercado de professores-freelancers em Lisboa, aumentar o preço é correr o risco de ficar sem pão. Há gente a cobrar cinco euros a hora. E, como se diz em alguns lugares do Brasil, professor de português é o pau que mais tem em Lisboa.

Um pouco desanimado, convenci-me não ter conquistado o estudante. Não lhe apresentei todos os ingredientes que ele expectava degustar no menu fastfood, algumas gírias, maneirismos de novela… faltou-me o molho. Fazer o quê? Quem é freelancer, ou seja, desempregado a fazer biscate e a ser chamado de empreendedor, passa por essas e outras mais. Quando se falha numa tentativa, volta-se para casa com a certeza de que amanhã será outro dia e que enfrentaremos todas as incertezas de novo, com a esperança de um resultado positivo.

Preparava-me para a despedida. O objetivo do estudante era praticar a língua. A minha função era assessorá-lo, apontando o que deveria melhorar, fazendo ajustes na conjugação verbal ou noutro aspecto sintático. Ele nada falava sobre o próximo encontro, até que me convidou para comer algo e beber um café. Dirigimo-nos ao balcão. Ele pediu ao empregado um pau de deus e dois cafés, se faz favor. O empregado riu, deixando-o meio embaraçado.

Voltámos à mesa. Perguntou-me o motivo do riso do empregado do balcão. Expliquei-lhe que a pronúncia correta era pão, não pau. Aquele era um ditongo nasal. Ainda lhe disse que pau também significava pénis conforme o contexto. Logo, se alguém pede o pau de Deus, quer receber o pénis divino. Insistiu em saber como era possível. Simples, a língua é viva e cheia de possibilidades. Para aprendê-la bem, basta vivê-la para além de um item disponível na montra de uma loja.

Alongámos a lição por alguns minutos. Esquecemo-nos da hora e, quando demos conta de que a noite caía, já se passavam duas horas de lição desde o minuto em que nos sentámos à mesa. Agradeceu-me pelos conhecimentos partilhados. Marcou a segunda lição para alguns dias depois.

Contente, voltei para casa a pensar que, por vezes, o dia de um professor-freelancer tem dessas coisas. Quando tudo parece perdido, vem um pau de deus salvar o dia. A distinção entre o pau e o pão (de deus ou não) é subtil e sem cor. É uma questão de ortoépia e, às vezes, de cavilação.

Vizinhos

Não sei se você conhece os seus vizinhos, mas eu estou a dar pela presença dos meus a cada dia, cada vez mais. Tento ser simpático, mas não para integrar-me à suposta comunidade ou para construir qualquer relação estreita. Sou simpático, acho eu, por ser simpático. A antipatia consome muita energia e gera energias negativas. Não faz bem a ninguém, suponho.

Se um dia algum vizinho precisar de ajuda, seguramente estarei disposto a ajudá-lo. Foi assim, quando vivi em Arroios. A senhora de 91 anos de idade, moradora da cave, estava caída nas escadas, com a cabeça a esvair-se em sangue, a suplicar a Deus que não lhe levasse, pois tinha muito a fazer nesta vida. Nesse dia, prontamente tentei assistir a neta que chegara um ou dois minutos antes de bater à minha porta, desesperada, a gritar por socorro: “A avó está a morrer. Ajuda-me, por favor”. Telefonei para a ambulância e, mais tarde, auxiliei a equipa do INEM a transportar a senhora até à viatura.

Doutra vez, quando morei nos Anjos, também teria ajudado a vizinha do piso de baixo, se fosse o caso. Achei que estivesse em cativeiro. O piso de madeira fazia-me saber de toda a sua vida, quase tudo, mas, sem dúvida, de todas as suas desavenças com a parceira. Elas possuíam uma cadela a quem deram um nome de gente. Eram, assim, no apartamento de baixo três fêmeas, cada uma com nome próprio de humano. Por este motivo, eu nunca sabia se Raquel era a dona ou a cadela, que, presa, se punha a arranhar a madeira velha do soalho.

Não me foi difícil imaginar que, depois de uma briga do casal, aquela que sempre se mostrava mais agressiva tivesse decidido amarrar a outra no quarto em baixo do meu. Assim me convenci durante muito tempo. Ponderei ir lá inquirir ou até participar a situação à APAV ou à PSP. Desisti disso num dia qualquer, a meio da semana, o dia em que extravasaram humores. “Fizeram as pazes”, concluí. Afinal, Raquel era a cadela, já as donas chamavam-se… as donas da Raquel.

Contudo, devo dizer que há vizinhos e vizinhos. Já o disse, já lho disse. Mas ainda não comentei sobre aqueles que, nos últimos seis meses, de regresso a Arroios, no meu mais recente poiso, acabei por encontrar. Não sou refilão. Gostaria de sê-lo e de subir ao primeiro andar e protestar. Talvez devesse ir à porta do lado direito e pedir para se calarem. Até hoje nunca o fiz. Sinto-me ultrajado por mim mesmo, quando sei que estou no meu direito e, mesmo assim, não o reivindico. Quero, porém, convencer-me de que o melhor é estar vivo: há casos de vizinhos que matam vizinhos por muito pouco que se diga.

Recentemente, no primeiro andar, mesmo em cima do meu quarto, alguém arrasta uma cadeira por longas horas noturnas. Poderá sofrer de insónia. Não sei se é esse o caso. Imagino também aquelas cenas de tortura em filmes de suspense: poderá estar amarrado a uma cadeira, a debater-se para alcançar cada canto do seu quarto. Não ouço diálogos. Não tenho a menor ideia se é morador ou moradora. A voz “humana” — sim, entre aspas — que escuto, a única, pertence ou à Alexa ou à Siri. Às 9h, a Siri — talvez a Alexa — grita: “É hora de acordar”.

Por sua vez, no lado direito do mesmo piso onde me encontro, os vizinhos estão quase sempre alcoolizados. Noutro dia, entrei lá e pedi uma sopa. Era ainda tarde, ou seja, cedo. Não havia outros clientes. Tomei a sopa bem apimentada, que foi um santo remédio para a prisão de ventre e a constipação nasal. Eram duas constipações, anal e nasal, nesse dia. São nepaleses e fizeram do local um bar. Trabalham do início da tarde até às tantas da noite, de domingo a domingo. Quando há muitos clientes, alongam o expediente, o que tem acontecido com regularidade nos últimos dias. Naquele dia, aproveitei e anotei o nome do sinal da internet deles e a respetiva senha. Vizinhos são para essas coisas também. Usei-a até ontem, quando percebi que os meus dados tinham sido ativados. Certamente alteraram a senha e não me disseram nada. Absurdo!

Agora passa da duas da manhã. Do meu quarto, escuto gritos. Pode ser briga ou celebração. É melhor manter o benefício da dúvida. Parecem animados os do lado direito. Já estou na cama. Vidros estilhaçam… Que ninguém se tenha aleijado. Tento dormir. Susto. O de cima caiu com cadeira e tudo, acho eu. Puxo o edredão. Faz frio. Talvez agora se arraste pelo chão. Quero dormir.

Às 9h, a Alexa — talvez a Siri — não perdoa: “É hora de acordar!”

Como descriminar quem incrimina o celular?

Há tempos, um amigo mandou-me uma mensagem no WhatsApp a partilhar a sua ideia de investigação para o trabalho de conclusão do seu curso de graduação, o famoso TCC. Muito entusiasmado, ele gostaria de saber a minha opinião sobre o seu tema de pesquisa, que, citando as suas próprias palavras, seria “a descriminação sofrida pelo homem do campo quanto a sua linguagem”.

DESCRIMINAÇÃO? Estranhei o uso do vocábulo, mas, em primeiro lugar, congratulei-o pelo empenho em levar a vida académica a sério. O ingresso no ensino superior era-lhe um sonho antigo e fora alcançado havia menos de um ano. Mesmo com mais da metade do curso pela frente, ele já se preocupava com o TCC, ou seja, com o final do percurso.

Depois dos parabéns, julguei coerente chamar-lhe a atenção para os problemas linguísticos na sua frase. Afinal de contas, além de ser um estudante universitário, ele cursava uma licenciatura em língua portuguesa.

“Afinal, qual foi o crime cometido?” — perguntei-lhe por gracejo, na tentativa de que ele revisasse a frase e identificasse o emprego equivocado do substantivo descriminação. Imaginei que não fosse agradável enviar-lhe uma mensagem do tipo «Olhe, você escreveu errado e pá, blá, pá, pá, blá, blá». Optei pela sutileza, pensei eu, mas não surtiu o efeito expectado. Talvez lhe tenha soado como ironia ou sarcasmo.

“Que crime?” — disse-me, ignorando o erro linguístico e, com um tom quase agressivo, arrematou o seu descontentamento com o seguinte: “Este é o tema. Não entendeu, não, foi?”

Após essa reação, restou-me o confronto direto. Enviei-lhe a seguinte mensagem: “A DISCRIMINAÇÃO sofrida pelo homem do campo quanto À sua linguagem”. Todavia, sem o efeito esperado. Ele repetiu-me que era aquele o seu objeto. Explicou-me o significado do enunciado, do enunciado corrigido por mim, pois o dele produzia outro efeito de sentido. Depois, justificou-me a sua escolha.

Sem pestanejar, expliquei-lhe a diferença semântica entre os substantivos descriminação e discriminação. Conquanto não conste em todos os dicionários, o primeiro é mais utilizado no Brasil do que em Portugal. É formado a partir da junção do prefixo des e do sufixo ção à raiz do verbo criminar, que, por sua vez, é sinónimo de criminalizar e incriminar. O seu significado refere o ato de inocentar alguém acusado de ter cometido um crime. Por sua vez, o segundo substantivo é formado a partir da junção do sufixo ção à raiz do verbo discriminar e denota o ato de distinguir, diferenciar, julgar a partir de preconceitos sociais ou características de outra ordem. Acreditava eu que estivesse a contribuir para os primeiros passos do projeto de investigação. No caso, a simples adequação vocabular ajudaria a apresentar o seu objeto de estudo com clareza.

Porém, o meu interlocutor revelou o desconforto e a ofensa que eu lhe causara: “Eu peço ajuda e tu vem corrigir”. Acrescentou: “É claro que sei a diferença”. Nem por isso, deixou de dar uns pontapés na língua.

Se sabia a diferença entre os substantivos, perguntei-me a mim mesmo, qual a razão de não corrigir os equívocos a tempo? Como eu poderia ajudá-lo sem a emenda linguística? Negligenciar a descuido de um amigo e ainda colega não seria um comportamento honesto da minha parte, principalmente na condição de revisor de texto e professor de português.

De todo modo, esquivei-me de qualquer reparo às suas falas, pois, se eu comentasse algo a respeito da conjugação do verbo quando o sujeito é a segunda pessoa do singular, não sei o que aconteceria. Ele seria capaz de escrever em letras capitais: «LÁ VEM TU DE NOVO!” Resolvi nada referir quanto à concordância verbal, pois não sei se perceberia se eu lhe dissesse: “Agora, tu vens com outra calinada”.

Silenciei-me para evitar indisposições e até animosidades. Além do mais, era ele quem me solicitava a opinião sobre o seu objeto de investigação. Se fosse o contrário, digo, ele a alertar-me sobre algum erro gramatical que eu cometera, eu agradecer-lhe-ia o favor. Confesso que me envergonho quando negligencio o nosso idioma. Esperava do colega — e amigo — uma reação que não aquela, principalmente por se tratar de um futuro professor da nossa língua materna.

Passados alguns minutos, enviou-me o seguinte: “A culpa é deste celular, que corrige tudo errado”.

Respondi-lhe: “Compreendo, pois, às vezes, a tecnologia complica”. Disse-lhe isto, mas convicto de que não era o caso.

Depois de minutos, mandou-me um “É”, bem seco.

“Mas não há como descriminar quem incrimina o celular” — insisti.

“Sei” — enviou-me, mais seco do que o “é”.

“Até porque tu serás um professor de português, não é?!”

Ficou off-line.