Duas esquinas. Exatamente duas esquinas alcançadas no trajeto da morada dos meus pais ao barbeiro. Um homem sentado numa cadeira de balanço, feita de ferro, com assento e encosto de palha entrançada, debaixo de uma varanda que protegia a fachada da residência.
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Por vezes, vínhamos da universidade, parávamos e sentávamos ali, debaixo da varanda, a conversar e a esquecer as horas. Depois de longa resistência a interromper o papo, despedíamo-nos com a certeza de que, se poupássemos minutos imediatos, teríamos outros tantos para usufruir na jornada seguinte. E, assim, lá estávamos no outro dia… e no outro… e no outro… se brincasse, a semana toda.
Era a nossa amizade ainda incipiente que tecíamos. Com frequência, a sua mãe, mesmo cansada e meio adormecida, surgia à porta, a recordar que estava tarde. A minha mãe geralmente levantava ao ouvir a chave na porta. E, então, lembrava-me de que já era bem tarde para eu estar na rua e que ela, a minha mãe, ficava preocupada até o meu retorno.
Existiu quem, com malícia, perguntasse “Que amizade é essa, hein?”, para ouvir como resposta o silêncio seco. Olhares julgadores de familiares e vizinhos, entretanto, não nos impediram de ligarmo-nos em uma singela e duradoura ligação afetiva.
Os anos passaram-se e dividimos angústias e alegrias por motivos diversos. Foram os namoricos fortuitos e sem futuro, as falsas amizades, as verdadeiras também, as relações com colegas de trabalho… entre tantos assuntos que preenchiam as horas de conversa já não só na calçada da sua casa.
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Alguns eventos marcaram datas intensamente. Em consequência, fortaleceram a relação através do apoio emocional que nos exigiram de um para o outro.
Foi assim quando a sua mãe adoeceu pela última vez. Tudo ocorreu de súbito: de um simples ferimento que desencadeou um caminho sem volta até o trágico momento em que a autoridade médica apareceu a dizer “Não teve mais jeito.” Daí, em meio a todo o luto, os procedimentos necessários ao sepultamento: do translado do corpo até o enterro na pequena cidade do interior, a cidade natal da mãe falecida.
Acompanhei-o sempre que pude. Vaivéns entre a casa, o trabalho e o hospital onde estavam. Às vezes, quando não podia ausentar-me do trabalho, lá estava ao seu lado, através da sintonia telepática ou com o auxílio da tecnologia.
Houve momentos que causaram tensões devido a divergências de opinião e de tomada de decisão. Mesmo assim, tivemos o discernimento de deixar a razão, digo, a amizade prevalecer.
Foi assim quando me confessou que uma parte dos seus ganhos era destinada à manutenção de vícios e privilégios do pai e do irmão. O primeiro ameaçava-o: se não desse dinheiro, vendia a casa. E, como o imóvel era a coisa mais importante deixada pela mãe, o meu amigo esforçava-se para protegê-la e, por isto, cedia às chantagens paternas. O segundo casou-se num momento da vida, teve uma filha, separou-se e, conforme orientação da Justiça, passou a pagar uma pensão à mãe da criança. No entanto, atrasava o pagamento dessa obrigação paterna e, sob o risco de ser preso, induzia o irmão, o meu amigo, à assunção daquele compromisso.
Eu protestava sem sucesso. Não é justo que você trabalhe para manter vícios alheios. Quem quer beber e farrear por aí que ponha a mão no bolso. Quem fez o filho que o alimente. Um absurdo, a meu ver, pois tanto o pai quanto o irmão saíam por aí, bebendo, comendo, gozando… E ele trabalhando, trabalhando, trabalhando, para ser desrespeitado dentro da própria casa. Somente depois do seu falecimento, eu soube que o seu pai o expulsou de casa, por não aceitar a sua sexualidade. É assim: há quem despreze o filho, mas não largue o osso, digo, o dinheiro do filho. O seu pai era assim.
“Não ceda às chantagens”, disse-lhe. Como professores, dedicávamos a maior parte do dia à sala de aula, por vezes três expedientes distribuídos em diferentes escolas, para ganhar um pouco mais ao fim do mês. “No fim, você morre e eles ficam aí”, acrescentei umas tantas vezes. E, infelizmente, foi o que sucedeu em Janeiro de 2013.
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Estava eu no Gana, a trabalho. Nós não nos comunicávamos com a mesma frequência. Não raramente telefonei aos meus pais e fui indagado sobre o meu amigo. Preocupados, diziam-me: “Estão comentando que está muito doente. Você tem falado com ele? Está sabendo de alguma coisa?” As tentativas de contato acumularam-se, resultando num hiato quase eterno. Entretanto, eu já sabia que ele padecia das consequências de alojar um vírus tão nocivo em seu organismo, bem como sofria por negar a si o tratamento.
Meados de 2012, estive de férias no Brasil. Percebi os seus estrondos pulmonares, desconfortos intestinais, redução de peso repentina… Indaguei-lhe sobre as causas daqueles sintomas. Desconversou e, ante à minha insistência para verificar a presença do vírus no seu organismo, recusou-se a falar sobre o assunto.
Retornei ao trabalho e, como mencionei, quando estava no Gana, havia uma lacuna na comunicação. Porém, num certo dia, atendi a um recado que a minha irmã me transmitiu: uma mulher queria falar-me e o motivo da conversa seria a vida do meu amigo. Era uma amiga dele. Durante as férias, havíamo-nos encontrado numa churrascaria no centro da cidade. Fomos apresentados um ao outro. Depois daí, revimo-nos em contato de novo, quando o nosso amigo se debilitava devido à sua saúde a cada dia mais frágil. Ela contou-me todo o esforço que fez para convencê-lo ao tratamento. Quando conseguiu que ele fosse ao hospital, a situação era mais que grave: internamento imediato, a reação ao coquetel de medicamentos, a suspensão de contato com o seu mundo. Segundo ela, ele pediu que conversasse comigo. Gostaria de que eu fosse informado sobre o que acontecia. Do outro lado do oceano, amargurei-me pela minha ausência quando ele muito precisava de ajuda, apoio e cuidados.
O silêncio entre nós foi interrompido num dia de Dezembro, quando escutamos um ao outro pela última vez. Por sorte, alcancei-o no intervalo dos efeitos colaterais dos medicamentos. A voz falhava, mas dizíamos que era problema de conexão telefônica. Ficamos certos de que ele se trataria e, quando eu regressasse ao Brasil, estaríamos juntos. Prometi: dar-lhe-ia o suporte necessário para enfrentar a doença e a sociedade. Ele riu e chamou-me de “doido” por fazer tais promessas. Rimos juntos. Sofremos juntos. Alegramo-nos em alguma medida. A sua voz falhou mais uma vez, a chamada foi interrompida subitamente, retornei a ligação… nada… mais uma tentativa… nada… Preocupei-me. Contudo, encerramos o diálogo com a esperança de que nos veríamos de novo.
A ida ao Brasil ocorreu no ano seguinte. Porém, a esperança do reencontro não logrou. O seu estado de saúde agravou-se ainda mais. Apontava-se a grande alteração que o seu corpo sofrera em tão pouco tempo. No entanto, talvez por incerteza, talvez por preconceito, ninguém nomeava a enfermidade. Aproximadamente um mês após a nossa conversa, recebo a má notícia. Noites mal dormidas precederam aquele fatídico dia. Pressentia a iminência daquela terça-feira, 22 de Janeiro de 2013.
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Goto, queimor, azia… não sei qual termo melhor descreveria a sensação. A reação a uma situação desconfortável gera sintomas. No meu caso, estes localizavam-se na garganta, no estômago, na região lombar, nos ombros… no corpo todo.
Avistei o homem velho sentado sob a varanda da casa da esquina a dois quarterões da casa dos meus pais. Enxerguei-o de longe.
Cumprimentei-lhe a mão estendida. Soube que o filho mais novo, — hoje, o único vivo —, reside em Fortaleza, com uma mulher. Inferi, então, que passou a pagar a pensão da própria filha; do contrário, tinha sido preso por não a pagar. Será que está fugitivo? Se fosse este o caso, o pai demonstraria aflição, mas mostrou-se tranquilo com a mudança de residência do filho, alegando que, vez ou outra, ia visitá-lo. O senhor, por sua vez, pareceu-me bem disposto. Por pouco, não passa por turista, mas não há turismo por essas bandas periféricas da cidade.
O homem velho sentado sob a varanda da esquina a dois quarteirões da casa dos meus pais fez nenhuma menção ao dia de hoje, 4 de Outubro. A data marca o nascimento do seu filho mais velho e, coincidentemente, do meu melhor amigo, — hoje, morto por um vírus assassino e pelo preconceito do próprio pai.
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