













“— Oi, pai, como andam as coisas por aí?
— Está indo, mas é muita violência, como você sabe.
— Que violência, pai?
— A violência. O povo sendo assaltado a qualquer hora. Basta pôr os pés na calçada.
— Pai? Pelo amor de Dadá, olhe os exageros.
— Éééé… É assim mesmo, meu filho. Tem até menor de doze anos armado, roubando carro.
— Pai? E está assim mesmo, é? Desse jeito é? Crianças de doze anos, armadas, assaltando carros?
— Meu filho, lá vem você. Eu estou dizendo que um menor de doze anos foi pego com arma. Pronto.
— Ah, tá. Então, foi um caso, né?!
— E o que foi que eu disse?
— O senhor falou de um jeito que deu pra entender que agora as crianças de doze anos andam portando arma de fogo e assaltando por aí. Desculpe-me, mas é o problema da generalização. Veja que, por essas e outras, estão para aprovar a redução da maioridade penal.
— E não é pra aprovar não?
— Não. Reduzir a maioridade penal não resolve problemas sociais que são criados também por essas falas sobre a insegurança pública.
— Então, o que vão fazer se estão roubando?
— Pai, quem está roubando? O senhor está roubando?
— Lá vem você. Que história é essa, rapaz?
— Pai, o senhor fala de um jeito e não presta a devida atenção. É verdade que todas as pessoas, inclusive as crianças, roubam aí? É isto o que o senhor quer me dizer?
— Não, meu filho, não, claro que não.
— Então, pai, veja o perigo da generalização. O senhor já é avô e os seus netos terão doze anos um dia. Imagine, então, a situação: quando alcançarem os doze, ambos estarão roubando?
— Bote essa boca pra lá, rapaz. Lá vem você. Que história é essa, hein?
— Então, pai, essas falas nada ajudam, só pioram as nossas vidas. Quem ganha com essa ideia de que a violência está por todos os lados…
— Tá bom, tá bom… Eu só falava da violência que a gente vê no Brasil.
— Quem ganha? Não somos nós, sabia disso? São alguns grupos privilegiados, pois, em torno dessa ideia e da disseminação de uma violência para além daquela que é real, gera-se toda uma rede de práticas: segurança privada, pauta jornalística, planos de seguro para isso e aquilo…
— Tá bom, rapaz. Eu só falava da situação em Mossoró. Só isso.
— Pai, sabe o que é pior? Essas falas, essas ideias que correm soltas por todos os lados geram discriminação e violência contra aqueles que, injustamente, são julgados como agentes da violência, mas que, na verdade, são as maiores vítimas. Essas ideias acabam gerando preconceitos de classe e racismo principalmente contra a população pobre e negra.
— Meu filho, eu já disse que só tava falando do que a gente vê por aqui.
— Pai, nós sempre moramos na periferia: antes, vivíamos no Abolição; hoje, o senhor e mamãe estão no Bom Jardim. Quem sofre os efeitos dessas generalizações? Certamente, não é quem mora no Conjunto Nova Betânia ou noutros bairros residenciais elitizados da cidade.
— Eu sei, meu filho, mas…
— Eu sei, pai, mas violência há em todos os lugares. Imagine se eu ficar o tempo todo contando ao senhor os casos de violência que ocorrem por aqui. Uma amiga foi assaltada em Roma, um amigo foi furtado em Lisboa, outro caiu do penhasco ao tirar uma selfie, outra foi estuprada nas ruas de Coimbra, outra perdeu a máquina fotográfica e outros pertences perto de onde eu morava, uma amiga com doutorado e sem emprego… Ah, e há as bombas terroristas que caem aqui e acolá e são bem propagandeadas aí, no Brasil, pelos meios de comunicação. Ah, o caso do…
— Tá bom, homem. Aff…
— O senhor imagina já o efeito dessas histórias?
— Vou chamar sua mãe pra falar com você.
— O senhor não quer mais falar?
— Neide, venha. Ele quer falar com você.
— Pai, é só porque eu tenho medo de generalizações. Quando falam mal de homossexuais, o senhor me engloba, então? Digo, se um homem gay matasse alguém, o senhor acha que eu também mataria, já que sou gay?
— Neide, venha logo. Oh, Neide? Venha. Ele quer conversar, venha logo.
— Pai? Pai, está escutando?
— Lá vem sua mãe. Tchau, meu filho.”
— Foi assim que ele encerrou a conversa. Geralmente, é mamãe que fica mais tempo comigo ao telefone, mas ontem ele queria falar. Ligo semanalmente para saber como estão, para dizer como estou, para escutá-los e para que me escutem. É sempre assim: esteja eu em Natal, em Accra, em Coimbra, o telefonema semanal para os meus pais é religioso, quase missa dominical, mas, às vezes, dá-se na segunda, na terça, na quarta… Não há dia certo, só tem de acontecer. E não é diferente agora que estou cá em Lisboa.
Do outro lado da linha.
— Como assim? Assuntos maçantes com o meu pai e a minha mãe? A que te referes?
Do outro lado.
— Vê lá o que estás a dizer, pois eles é que trazem a política para o centro da conversa.
Do outro lado.
— Sim, digo-te. Eles trazem-me o tema, sim, senhor! Trazem-mo, sim, senhor. Já to disse. Ou tu pensas que a segurança pública e a inflação não são questões políticas?
Do outro lado.
— Ah, então, agora me estás a dizer sobre que temas devo tratar com os meus pais? Entendi-te bem, Miguel? Então, estás a sugerir que eu passe a jogar conversa fora e a dizer como é viver na Europa, como é viver em Portugal, como são os palácios de Sintra, as alcovas da realeza destronada, é isso mesmo? Oh, Miguel, deixa-me perguntar-te: és inocente ou o quê? Pensas que viver em Lisboa implica estar imune à política de cá e de lá?
Do outro lado.
— E tu, como português que és, enches agora o peito com a tua identidade europeia? Então, pensas que isto não é política?
Do outro…
— Miguel? Estás aí?
Do outro…
— Oxente, acho que a ligação caiu. Fogo.
Do outro…
— Miguel? Alô? Tás mouco? Tás mudo? Tá?
Do outro lado.
— Olá!
Do outro lado.
— Quem? E o Miguel?
Do outro lado.
— A mãe do Miguel? Olá! Prazer em falar com a senhora. Não sabia que estavas em Lisboa.
Do outro lado.
— E o Miguel?
Do outro lado.
— Saiu?
Do outro lado.
— Mas está tudo bem?
Do outro lado.
— Ah, não há problema. Essas urgências acontecem. Só espero que ele fique bem e que tudo se resolva logo. Depois, chamo-o e marcamos um café.
Do outro lado.
— Também gostei de falar com a senhora. Adeusinho.
Observação: a primeira parte deste texto foi publicada neste blogue com o título “Eu, papai e as generalizações“.
— Não quero namorado, eu disse-lhe no dia em que o tarô aconselhava abrir o coração.
Apenas registando,
registrando,
registando,
estou sequelado.
— Não quero mais ninguém.
Apenas registrando,
registando,
registrando,
estou sequelado.
— Antes de resgatar-me a mim, não quero… — digo-me, quando o tarô aconselha abrir o coração.
Bem
ponto
espaço
Obrigado
por
perguntar
ponto
espaço
Mas
reticências
De facto
vírgula
bem
tenso
vírgula
mas
estou
bem
ponto
espaço
Acho
que
estou
ponto
espaço
Na
verdade
vírgula
tento
estar
ponto
— He blô me. — he said after I had asked him about a Chinese friend we have in common.
— Ok. Nice for you. — I commented back with such an astonishing face. I had sincerely never expected them to be openly gay and in a relationship, especially because once one of them assured me that, in their country, homossexuality is not allowed by law. They come from the same place.
— Nice? How? — he replied expressing an even greater surprise.
— Yes, it’s nice you guys… — some pause. — It’s nice you and he are having an intimate relationship.
— Why do you say that? — he was clearly unconfortable.
— But you said “he blow” you.
— No.
— You said he blows you… like blow…
— Nooooooo. He blô me.
— So! You said.
— Please, do you have a pen? — he asked me laughing. I did not know why he was laughing in such a way.
I looked for a pen in my bag, got one and gave it to him. He took the receipt of the snack we had just bought in the bar and wrote something on that piece of paper.
— You see? — he said loudly. I turned to him, because I had distracted myself for seconds observing something, and he was showing me the paper with blocked written on it. — He blô me. Understand?
— Ohhhhh… — I startled for once in that afternoon, because I could not believe that their friendship had ended. — So, he blôôôô you?
— Yeeeeeesssss.
À beira do semáforo, falava com alguém. Os interlocutores eram o homem e a mulher brancos ao seu lado esquerdo. Foi o que pensei, mas somente ele se manifestava.
Girei a cabeça para a esquerda. Girou a cabeça para a direita. A boca mexia freneticamente. Articulava palavras. Proferia ideias que só fui perceber alguns passos depois.
Olhámo-nos. O sinal abriu.
Pensei ser um monólogo. Enganei-me. Expunha-se a quem lhe ouvisse, mesmo na tentativa de ignorá-lo.
Notificava o mundo. Denunciava a fome. Anunciava a vontade de comer. Revelava a sua situação na vida. Pedia.
Apenas nos olhámos por instantes. Não me solicitou qualquer palavra de facto. Disse-lhe «é assim mesmo.» Não sei o motivo de eu ter proferido tais palavras. Melhor teria sido «entendo-te. Não está fácil.» Melhor teria sido…? Não sei. Melhor teria sido o silêncio? Não sei.
De qualquer modo, isso já não importa, pois dirigi-lhe o olhar, os lábios e o que veio deles. Os seus olhos nos meus, os meus nos seus, instantes suficientes para gerar um desconforto e um imperativo de atenção em mim, nele, de mim em sua direção, dele em minha direção.
«É desse jeito.»
Sentiu-se à vontade para desdobrar o monólogo num diálogo. E tornou-me o seu interlocutor. E tornei-me o seu interlocutor. Destravou o argumento de que a violência cotidiana resultava da insensibilidade de muitos para com aqueles que pediam na rua.
«Uma moeda. O gajo nega. Não sabe como o gajo está. Uma moeda. Diz que não tem. O gajo com fome. Sinto fome. Uma moeda, só uma. Não sabe como o gajo está. Com fome. Diz que não tem. Mas, aí, de dia, vejo o gajo no multibanco. Diz que não tem, pá. O gajo pede, porque tem fome. Diz que não tem. Aí, à noite, o gajo pega o gajo, sacode, aí vê que o gajo tem. Mas diz que não tem. Vejo o gajo no multibanco, pá.»
Entre uma frase e outra, eu dizia «é isso», «é desse jeito», «entendo», «sei como é»…
Entre uma frase e outra das que ele pronunciava, entre as frases interjectivas que eu pronunciava, ele ria. Não entendia a sua reação, mas ele ria alto.
Um ao lado do outro, já atravessávamos o segundo quarteirão, o segundo semáforo.
De súbito, parámos mesmo em frente ao supermercado. Entraria e compraria a dúzia que me custasse menos de dois euros. Era promoção, eu sabia-o. No bolso, guardava uma moeda de dois euros e necessitava de proteína. Não entraria, pois sabia do que se me esperava por parte do homem ao lado.
«Vejo o gajo no multibanco. Uma moeda? O gajo diz que não tem. O gajo dá a moeda, o gajo vê o gajo na rua e não mexe com o gajo, pá. É melhor pedir. Mas o gajo diz que não tem. Aí, o jeito é…»
Parados, um a olhar o outro. Expectativas. Ele a falar. Eu a escutar-lhe.
Estendi-lhe a mão para a despedida: «Oh, vou lá.»
Estendeu-me a sua mão em reciprocidade: «Uma moeda, pá.»
«Desculpe-me, mas… nem multibanco tenho.»
«Beleza pura, pá!», disse-me a rir e a imitar o sotaque brasileiro que conhecia, o mais popular e reproduzido em Portugal. Não é o sotaque típico da minha região, mas tá, mas vá.
Apertámo-nos as mãos em cumprimento, em despedida, em reciprocidade, numa demonstração de condescendência mútua.
Sabia que nem tudo estava beleza, principalmente a nossa situação presente, as nossas condições de vida, mas, com um sorriso estampado na cara, «Beleza!», exclamei de volta e toquei-lhe o ombro. Puxou-me e deu-me um abraço caloroso.
Separámo-nos. Dirigi-me à casa, sem os ovos, mas com o espírito renovado pela troca de energia com aquele homem. Houve ali qualquer coisa que me fez bem.
«Alô?», atendi ao telefone que gritava pela segunda ou terceira vez, sem paciência, já de manhã. Era o mesmo número das chamadas perdidas.
«Bom dia, senhor. Aqui é da companhia telefónica. Com quem falo?», pergunta-me uma voz masculina do outro lado da linha.
«O senhor ligou, diz que é da companhia telefônica e pergunta o meu nome? Não é suposto que a companhia telefônica tenha os meus dados?», atiro-lhe revelando a impaciência espoletada pela informação de que era da companhia telefónica (ou telefônica, a depender da pronúncia do falante). Nos últimos dias, já tinha recebido alguns telefonemas da mesma empresa a “oferecer” um produto. Não entendia o motivo para insistirem com a “oferta”, quando lhe tinha declarado o meu desinteresse na aquisição do que quer que fosse. Tenho de dizer que, mesmo sem o avanço do diálogo imaginava que o contacto daquele rapaz tivesse uma razão, a mesma da rapariga e do rapaz que lhe antecederam: convencer-me a obter “um novo plano de tarifário”, sempre cheio de vantagens, por um precinho-ó.
«O senhor poderia ter registado o número em nome de outra pessoa.»
«Ah, então, o senhor sugere que eu seja um impostor? E que eu incorra no crime de identidade falsa?», estupefacto, questionei-o.
«Não, senhor, não é nada disso. Só quis dizer que…»
«Olhe, diga-me o que deseja, por favor?»
«O senhor teria interesse em adquirir um novo plano de tarifário…»
Interrompi-o:
«Então, se eu não fosse quem sou, digo, se não fosse o verdadeiro assinante desta linha telefônica, como o senhor me poderia oferecer uma mudanção de plano? Não precisaria de certificar a minha identidade? Um falsário poderia, então, efetuar alterações no meu plano e propiciar despesas financeiras para mim, sem o meu consentimento?»
«Qual o plano que o senhor assina?»
«Então, continuará a me oferecer um novo plano, mesmo sem estar seguro de que eu sou eu?»
«Senhor,» interrompeu-me ele agora, «deixe estar.»
O aparelho começou a apitar. Ninguém me ouvia do outro lado da linha.
Fiquei boquiaberto. Que impaciência, hein?! Não me deu tempo de dizer nada nem de saber o seu nome. Será que eu disse algo errado? Será que fiz algo errado? Ele desligou sem nem desejar “Boa continuação”.
Ah, tu achas que fui grosseiro com ele? Sério que tu achas isto? Sinceramente, eu penso que não. Não me venhas acusar de nada, antes de saber os detalhes do evento. E tu duvidas de que foi um evento? Tu não estavas naquela sala, com aquele homem totalmente estranho para mim. Quem era? Ah, tu queres saber quem ele era? Eu lá sei. Sinceramente, eu não sei nada sobre ele. Ah, sei, sim, que ele era bem estranho.
Começou fazendo-me umas perguntas sobre a minha vida. Parecia bem curioso. Perguntou o que eu fazia, digo, com o que eu trabalhava. Eu disse que ensinava numa escola de idiomas. Quis saber, então, desde quando eu exercia a profissão. A minha idade também. Ora, como a pessoa pergunta a idade num primeiro encontro? Aí é demais. Brincadeirinha boba minha, mas ele já deveria ter esta informação. Depois, ele veio com umas questões descabidas. Sim, na minha opinião, bem descabidas.
Ele queria saber da minha intimidade. O quê? Tu nem imaginas? Adivinha. Ele quis saber se eu tinha uma vida sexual ativa. Ah, achei bem estranho isto. Se ele estava interessado? Ah, eu não sei, mas que ele insistiu nisto ele bem que insistiu. Perguntou se eu morava sozinho? Se morava com a minha família? E eu bem que achei estranho. Tentei subterfúgios para não responder, mas sem êxito. Eu, por fim, respondi assim: “Ativo, passivo, participativo! Sou solteiro e bem versátil.” Acho que ele se assustou. O que tu estás dizendo? Não penses que eu estava me oferecendo. Ah, não me venhas com as as conclusões precipitadas. É claro que eu não estou pulando a cerca. Isto aconteceu há alguns anos. Agora é a história é outra: tu sabes que estou comprometido. Ele deveria estar interessado no meu estado civil. Mas, então, por que não foi direto ao ponto? Era só perguntar se eu era solteiro. Mas não. Ele não fez isto. Preferiu saber se eu era ativo… sexualmente falando.
Deixa-me continuar… Eu estou sendo sincero. Tu não acreditas em mim? É sempre assim: eu conto o que acontece comigo e, em seguida, tu vens dizer que é mentira. Tudo bem, não é sempre, mas é quase sempre que tu me julgas equivocadamente. Então, queres que eu te conte a história?
Naquela tarde, ao sair de casa, a minha grande expectativa era a de encontrar alguém minimamente atencioso e que me pudesse ajudar. E, assim, eu fui direto aonde eu presumia que encontrasse esse alguém. No entanto, não foi bem isto o que sucedeu.
Eu estava apreensivo já há alguns dias, pois eu sentia dores na lombar, nas pernas e em algumas articulações. E não creio que essas dores tivessem relação com a minha vida sexual. Por isto, considerei algumas perguntas inoportunas.
Aquela tarde não começou bem, desde o momento em que me dirigi à recepcionista e solicitei uma consulta com o doutor Silva. Ela disse que ele não se encontrava, mas que havia outro no seu lugar. Eu não gostei nada daquilo. Ora, por quê? Porque eu já estava acostumado com doutor Silva, que sempre me ouvia, examinava, diagnosticava e, se fosse o caso, medicava adequadamente. Então, não havia motivos para eu mudar de médico.
Mas, naquela situação, fazer o quê, né?! Você voltaria para casa, sentindo dores? Ao menos, não seria nada recomendável. Eu, então, resolvi ficar e tentar, mesmo não gostando de encontros às cegas. Ah, por favor, não me entendas mal, mas, para mim, uma consulta médica é como escancarar a sua vida para outra pessoa. E essa outra pessoa detém muitos poderes, pois toma decisões cruciais para manter a nossa vida ou, dependendo da situação, para agilizar a nossa morte. Como eu desconhecia o médico novo, eu considerava aquele um encontro às cegas.
Bem, lá estava eu esperando a minha vez, que quase não chegava. Em geral, é assim que acontece: dez, vinte, trinta minutos… às vezes, uma hora de espera para pouquíssimos minutos de consulta.
A vez chegou. Entrei. Aquelas perguntas de que te falei. As respostas que eu dei. Parecia que o doutor que nem o nome eu sei não estava nem aí para as minhas dores. Achei que ele não demorou nem dez minutos para decidir sobre o que eu deveria tomar. Entregou-me um folha. Era a prescrição médica. Eu olhei-a. Não entendi nada do que estava escrito. Então, eu pedi para ele me explicar o que estava escrito ali. Ele olhou para mim e disse: “Eu não tenho todo o tempo para você.”
Depois de escutar aquilo, o que é que tu pensas? Que eu deveria ficar caladinho e ir direto à farmácia, onde, segundo o mesmo doutor, um profissional saberia ler a sua letra? Eu só me levantei da cadeira e dirigi-lhe a seguinte questão: “Quem lhe disse que eu quero todo o seu tempo?” Retirei-me da sala e retornei à recepcionista, a quem fiz queixa.
No outro dia, lá estava eu de novo. Para quê? Por que eu voltei lá? Lembra-te de que preenchi uma reclamação contra o médico? A recepcionista comunicou-a ao dono da clínica. Ah, tá, tu estavas lá? Não, mas pensas que retornei a fim de brigar com o dono da clínica ou com a clínica toda, né isto? Por favor, tu deverias saber que odeio confusão. Não rias, pois é verdade.
Tu não crês? Foi o próprio dono que solicitou a recepcionista para contactar-me. O que ele queria? Ah, ele também era médico e pretendia compensar o fiasco da consulta do dia anterior. E o doutor Silva? Continuava ausente. Eu sei que era outro encontro às cegas, mas o que eu poderia fazer? As dores persistiam. Se correu tudo bem dessa vez? E as perguntas que esse me fez? Ah, ficaste curioso, hein?! Mas, aí, vai ficar para a próxima. Vou ter de ir agora, pois tenho consulta marcada.
_ Hey, psiu.
_ Psssiiiiiiiiuuuuuuuu.
_ Psiu.
_ Hey, meninos, silêncio, por favor.
_ Hey, vocês que aí conversam na sala de estudo reservado, à porta aberta, poderiam…?
_ Hey, garotos, garotos, escutem aqui, por favor.
_ Hey, rapazitos, assim não dá pá.
_ Hey, caralho, vê se tu fazes silêncio, porra.
_ Hey, oh, menino surdo, moco, sem ouvido, puta que pariu.
_ Hey, porra, fala baixo, caralho.
_ Psiu, hey, psiu, hey…
Foram tantos os usuários da biblioteca a sentirem-se incomodados. Foram tantos os psius. É claro que não escutei as palavras de baixo calão. Mas não minto: eu bem tive vontade de proferir uma colecção de tabuísmo. Talvez tivessem sido mais eficientes.
Eu bem sei que, em Portugal, um psiu em público pode ser motivo de afronta para alguém. Entretanto, durante os meses em que tenho frequentado a Biblioteca da Faculdade de Letras, por vezes, o psiu é o alerta mais comum e mais eficiente, se considerarmos a rapidez como é compreendido pelos destinatários, os frequentadores que, porventura, ficam a conversar, em vez de estudar.
Hoje à tarde, todavia, os psius pareciam não funcionar. Dois rapazes chegaram já a conversar em alto volume. Dirigiram-se a um sala de estudo reservado. Abriram a porta, entraram, sentaram, acomodaram-se… conversavam… conversavam…
E a porta? Aberta. E a biblioteca? Cheia. Em algum momento, uma chuva de psius. Os meninos, porém, pareciam bem protegidos. A porta aberta estava, mas eles deveriam estar protegidos por qualquer redoma.
_ Psiu, hey.
_ Falou comigo?, um dos meninos conversadores escutou e dirigiu-se a mim, uma vez que eu fui o último a psiuzar.
_ Sim. Desculpe-me, mas vocês estão conversando bem alto. Poderiam fechar a porta?
_ Por que não falaram connosco?, ele perguntou. Quando ele disse isto, eu compreendi que se sentiu ofendido com o tal psiu. Eu também me ofenderia, caso estivesse na rua ou num outro ambiente e alguém se dirigisse a mim com tal interjeição. Contudo, estávamos na biblioteca e qualquer utente daquela biblioteca não estranharia o tal som e entenderia que alguém havia sido desconcentrado, que alguém desconcentrava outrem com algum barulho ou com alguma interacção imprópria para o ambiente. Mas o menino era diferente: _ Por que não veio aqui pedir para falarmos baixo?
_ Nós estamos estudando, pedimos algumas vezes, mas não houve êxito algum. Agora, permita-me perguntar-lhe: vocês não se escutam? Vocês estão falando alto, muito alto. Fechem a porta, por favor.
O utente sentado à minha frente olhou para trás, cumprimentou-me. Acenei com a cabeça. A menina à minha frente sorriu timidamente. Outra mais à frente respirou aliviada. Eu respirei, corrigi a minha postura, reabri o livro, mas antes dei uma olhadela de lado e percebi que o menino conversador me fitava pela parte de vidro da sua sala reservada. Mirei-lhe os olhos e levei o dedo em direcção à minha boca. Silêncio é o básico que se pede a um utente de biblioteca.
1.
sonhos,
projetos,
trajetórias
incinerados.
.
não é (do) direito,
é?
2.
esse
que oprime,
que tolhe,
que caça
e cassa.
.
esse
que dissimula
e inventa
verdades.
.
esse
que produz
e fortalece
mentiras.
.
esse
que tiraniza
o direito que
alguém pensou
conquistado.
.
esse direito
destro-sinistro.
(GRITO!)
3.
direito
tão torto
nunca se viu um
como o da terra
de todas as castas
em convivência
democrática e pacífica.
.
o sociólogo o disse,
mas não rias, pois
o pobre do homem
de tão rico
nunca saiu da casa-grande
e sempre nos quis na senzala.
.
o homem foi capaz
de falar e construir teorias,
de prender-nos em laudas
que nos eram proibidas,
de fingir uma tal
de democracia das raças.
4.
crês nisto
de democracia?
eu nunca.
.
e nisto
de governo
do povo?
.
não existe este
vocábulo
no dicionário?
.
será
de uma língua
morta?
.
será
de uma mão
que mata
a democracia
e algumas raças.
5.
CUIDADO!
.
praticantes de um direito
destro e sinistro
ameaçam-nos.
.
eles
golpearam-nos
a esperança de treze anos,
agora condenada
a decênios de quarentena,
a outros séculos de sofrimento.