Nunca pensei ser tão difícil elaborar uma nota de falecimento. O meu irmão pediu-me para fazê-lo.
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Hoje, durante as primeiras horas do dia, faleceu o meu tio que era irmão gêmeo do meu pai. Eu soube aproximadamente às 10h, quando vi a mensagem de WhatsApp do meu irmão enviada às 9h43min, no fuso horário de Lisboa; em Mossoró, eram talvez 6h.
Perguntei-lhe a hora em que o seu cérebro parou de funcionar definitivamente, mas não com estas palavras. Ele disse-me que tinha sido hoje, pela madrugada, mas não com estas palavras. Recebeu a ligação da minha irmã às 5h, para comunicar o facto.
Há dias, o tio sofrera um acidente vascular cerebral (AVC) e, entretanto, internado num hospital, sobrevivia por meio de aparelhos. Nenhuma palavra, nenhum gesto. Nenhum esgar a demonstrar desgosto pela situação em que se encontrava. A depender de todos para tudo, o que lhe importava? A vida já se reduzira à cama do hospital e aos aparelhos. Os médicos atestavam um mínimo de atividade cerebral. Em que estava a pensar nos últimos dias, nos últimos minutos de vida? O que lhe importava?
O cérebro era o que lhe mantinha morto entre os vivos. Sim, morto já estava o corpo. Um AVC, uma isquemia, talvez pequenos derrames de que não tenhamos tido conhecimento. O corpo paralisara por completo exactamente no dia em que recebera alta para retornar à casa. Quando o preparavam para partir, a isquemia… Parecia ele a implorar que o deixassem ali, que não valia a pena tentar… não valia a pena…
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Por vezes, o meu irmão demanda-me esses favores de súbito e com urgência. «Hey, faz-me aí um texto para eu mandar aos clientes. Informa que amanhã faremos bolo e pão especial, por ocasião da Páscoa.»
Há pouco, mandou-me um WhatsApp. «Faz-me uma nota de falecimento para podermos publicar. Deves dizer que o tio trabalhou em tal e tal lugar.»
Levei um tempo para responder-lhe: «Não sei como o fazer.» Hoje me dou conta de que “nota de falecimento” é um dos tipos de texto mais difíceis de redigir.
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