25 de Abril não é uma simples efeméride histórica.

Lisboa, abril de 2023, vigésimo quinto dia.

No ano passado e no antecedente, não fui à marcha do 25 de Abril, mas, neste, qualquer hesitação foi contrariada pelos passos decisivos que mais uma vez me levaram à Avenida da Liberdade num dia que não pode ser tratado como uma simples efeméride histórica. Os problemas corriqueiros de uma vida porventura precária não nos podem impedir de celebrar as conquistas de ontem e de lutar para superar os desafios de agora. Novas conquistas virão. Disto estejamos seguros, desde que nos esforcemos para alcançar nem que seja um pouco mais de existência, nem que seja uma nova consciência de nós mesmos, nem que seja um estado de espírito pacificado, nem que seja um alento de resistência e transformação.

Saí para pelo menos ver um pouco da marcha e respirar o 25 de Abril que se renova a cada ano. Não voltaria para casa antes de cumprir a missão. Parti. Entretanto, no meio do caminho havia um pombo. Quando passava pela Rua da Bempostinha, vi um pombo na passadeira, quase à entrada de um prédio, um pouco à sombra. Caminhava com alguma pressa e deixei-o para trás. Mas, mais adiante parei e voltei-me. Ele estava sereno, parecia abrigar-se na última réstia de sombra que lhe seria possível para viver os últimos minutos de vida. Estava muito ferido. Na cabeça havia qualquer coisa como um furo com secreções. Percebi isto, quando retornei e, com algum cuidado, apanhei-o. Levei-o até ao Campo Mártires da Pátria, onde o alberguei à sombra de uma árvore, à margem de um dos lagos. Julguei que não tivesse forças para voar nem mesmo andar. O bicho apressou-se em beber água. Ajeitei-o para evitar um afogamento. Acomodei-o da melhor forma possível e segui o meu caminho.

Estava um dia soalheiro. No Jardim do Torel, muita gente com pouca roupa, a ler, a conversar, a banhar-se na piscina. Entrei por um lado e saí por outro na Rua das Pretas. Quando pus os pés na Avenida da Liberdade, uma emoção forte visitou-me, o peito apertou e tive de segurar-me para não chorar na frente de todos, mesmo estando sozinho. Tem sido sempre assim no 25 de Abril.

Procurei a sombra de uma árvore e fiquei a observar a multidão a vir da zona do Marquês de Pombal como se buscasse desaguar na Praça dos Restauradores. Provavelmente alguém seguiria até ao Tejo. Mudo-me de berma e, sob a luz solar, mesmo com a minha fotofobia, ponho-me a sentir a multidão fluir e fruir.

Em anos anteriores acontecera de imiscuir-me e anónima e solitariamente deixar que os pés me levassem ao som de Zeca Afonso desde um alto-falante, de um carro de som ou das tantas bocas que se juntavam numa coletividade esperançosa de democracia, fraternidade e melhores condições de vida para todos e todas. Sabemos que há sempre desarmonias em meio a mais densa harmonia de um dia como estes. Há gente a olhar para o próprio umbigo e a borrifar-se para o do próximo. Apesar disso, Zeca Afonso parecia conseguir colmatar o espaço deixado pelas descoincidências de feitio, ideologia, procedência que afastariam uns corpos de outros num dia que, como disse, não era nem será uma simples efeméride. O aperto no peito e os olhos a quase transbordar sempre lá estavam comigo.

Neste ano, pus-me à sombra de uma árvore que não era uma azinheira, mas que me abrigou do sol intenso, para de novo sentir a emoção, o aperto no peito e os olhos marejarem. Nunca vi tanta gente num 25 de Abril como neste ano. Muitos atenderam ao chamado para exercer um grande princípio democrático, a liberdade de expressar-se e o dever de resguardar o direito dos outros e das outras de fazer o mesmo. Digo isto a pensar na expressão da voz, mas não só, pois hoje vi grupos a fazerem-se representar e a representar-se através das suas vozes, dos seus corpos e dos seus movimentos. Este direito deve ser exercido e respeitado, sem que, ante a controvérsia e as diferenças de opinião, alguém se incomode e tente restringir a voz alheia, seja batendo na mesa seja esperneando como criança mimada.

Neste ano, em que o dia se fez controverso, este atender ao chamado de ir à Avenida, de marchar, de cantar, de gritar, de ecoar palavras de ordem, desordem e esperança parece-me capital ante uma comunicação social que insiste em flertar com o fascismo. Neste dia de celebração de Abril, jornalistas preferiram ignorar o respeito à democracia e aos resistentes capitães de Abril. Esses preferiram cobiçar quem nega os princípios da Revolução dos Cravos e usa a democracia para nutrir o embrião do fascismo. Talvez por isto também me tenha apressado a alcançar a Avenida da Liberdade neste 25 de Abril. Na televisão a opinião de quem tenta enxovalhar a República estava a ser propagandeada como se fosse uma voz sensata e honesta a acusar de desonesto alguém que nunca fugiu à responsabilidade de cuidar do seu povo e que, por isto, tirou milhares dos seus cidadãos do mapa da fome. Na televisão a opinião de quem anda de mãos dadas com grandes corruptos é propagada como se fosse um tratado anticorrupção. Insistir em ficar na frente do ecrã e contribuir para a audiência de quem contemporiza a renovação do fascismo corriqueiro do dia-a-dia é negar Abril e tudo o que esse gerou para todos e todas nós, indivíduos portugueses e de outras nacionalidades que hoje habitam este país.

Por tudo isso, quando vi gente a pulular em cada canto da Avenida da Liberdade, o aperto no peito deu lugar a uma alegria, a um contentamento, a um alento democrático. Foi o 25 de Abril mais colorido que até hoje testemunhei. A marcha evidenciou-se pela polifonia e pela multiplicidade de cores. É facto que as diferenças e as desigualdades insistirão em separarmo-nos a todos no dia-a-dia, dia a dia. Mas neste 25 ocupámos a ágora, tomámos o espaço público, fizemo-lo coletivo, assumimos a liberdade como nossa e fizemo-lo com ganas de justiça social.

Praticamente todo o tempo que estive na Avenida da Liberdade, fiquei nas proximidades da Rua das Pretas. Fiz umas fotografias amadoras com o meu telemóvel para guardar de lembrança, mesmo sabendo que a memória será a melhor caixa-forte para revisitar esta experiência.

Ao regressar à casa, vi de novo gente com pouca roupa no Jardim do Torel, a conversar, a ler, a beber, a banhar-se de sol e na piscina. No Campo Mártires da Pátria, voltei ao mesmo sítio onde pusera o pombo ferido. Ele já lá não estava. Espero que tenha reunido forças suficientes para andar e voar.

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