Entre o pau e o pão de deus: a primeira lição

Tudo azul? Um senhor lançou-me a pergunta noutro dia. Não lhe soube responder. Um sorriso amarelo. Ele esperava de mim uma resposta pronta. Quiçá pensasse que todos os brasileiros a usavam e, em caso contrário, pelo menos, a compreendiam. Eu deveria ter tomado a expressão como um simples cumprimento, talvez algo equivalente a olá, mas eu não sabia disto. Era a nossa primeira lição de língua portuguesa.

Ensinar português como língua estrangeira é um processo instigante e intrigante. Digo isto a pensar nos sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Sempre, antes de iniciar as lições, pergunto ao estudante as razões que lhe levaram a estudar o idioma. Investigo gostos, leituras, algumas preferências e experiências do estudante, para que eu possa organizar a aula a fim de atender às suas necessidades e alcançar resultados a curto e médio prazos.

Tenho-me deparado com pessoas das mais diversas faixas etárias e origens interessadas na língua. Há quem justifique a aprendizagem para valorizar o currículo profissional. Há quem o faça para ampliar os conhecimentos linguísticos e culturais. Há quem o faça porque não tem nada a fazer e, aparentemente do nada, decide matricular-se numa turma das famosas escolas de idioma ou em um curso do tipo aprenda-tal-língua-em-30-dias.

O homem do tudo-azul era estadunidense. Além da língua materna, o inglês, falava outros idiomas. Disse-me que lecionara espanhol no seu país. Nestes dias, reformado, passa a vida a viajar. Era a terceira vez em Portugal. Quanto ao português, falava sem grandes dificuldades e escrevia e-mails curtos sem o auxílio de tradutor online. Conhecia as variantes linguísticas, porque escutava estações de rádio brasileira e portuguesa na sua cidade, no norte dos Estados Unidos.

Na última visita a Lisboa, decidiu tomar algumas lições de português. Contactou-me atempadamente via e-mail. Combinámos de vermo-nos numa padaria popular da cidade. No e-mail, escreveu que gostava muito do pão de deus e do café daquele lugar.

No seu segundo dia em Lisboa, lá estávamos. Era o primeiro de três encontros, que depois se tornaram quatro. O tempo era limitado. Tínhamos de tirar proveito da sua curta estada. Ele disse-me gostar muito da cidade, queria praticar a língua, mas, sempre que as pessoas ouviam o seu sotaque, automaticamente passavam ao inglês, impedindo-lhe de treinar o nosso idioma. Queixou-se disso, argumentando que o bom conhecimento de inglês que muitos portugueses possuem se converte em um obstáculo para estrangeiros que querem desenvolver a língua em um lugar como Lisboa.

Eu preparara uma aula de sessenta minutos, mas deixei-a um pouco de lado, porque logo percebi a sua vontade de falar, falar e falar. Beleza? Eu falo brasileiro. De vez em quando, ele impostava a voz de forma diferente, conforme as expressões que aplicava e que tinha aprendido como sendo portuguesas ou brasileiras. Fogo. Isso é bué fixe. Registou a sua capacidade de imitar sotaques.

Quando afirmo que ensinar português como língua estrangeira é instigante e intrigante, digo-o a pensar em algumas especificidades da aprendizagem e do ensino de línguas. Mas, de modo particular, aludo àquilo que o aprendiz quer consumir. Sim, refiro a língua estrangeira como um produto que, por diversos motivos, é consumido como se fosse um menu de restaurante fastfood, sem espaço para imprevistos e para os sabores diversos de uma língua cheia de vida.

Alguns estudantes estão condicionados a certos chiados, pronúncias, jargões, gírias e outros elementos. O professor deve estar preparado para deparar-se com as expectativas daqueles que, ante a alteração de um simples ingrediente, a língua pode não lhe saber bem. A interação azeda. A comunicação fica com ruído. A aprendizagem não acontece.

O senhor dos Estados Unidos estranhou o “gosto” da minha língua. Não parece o jeito brasileiro de falar, disse-me. A esse jeito chamo sotaque brasileiro de exportação, aquele que se escuta e se aprende a imitar ao assistir às novelas produzidas por dois grandes canais de televisão do Brasil. Certamente, era o sotaque que ele acostumara ouvir.

O ato de lecionar é uma tarefa desafiante, edificante e, quando somos bem remunerados e atingimos os nossos objetivos com bons resultados, compensadora. Isso vale para qualquer matéria. Cobro dez euros a hora. Considero barato, consideram barato. Já se ganhou melhor. Porém, a levar em conta a concorrência e o mercado de professores-freelancers em Lisboa, aumentar o preço é correr o risco de ficar sem pão. Há gente a cobrar cinco euros a hora. E, como se diz em alguns lugares do Brasil, professor de português é o pau que mais tem em Lisboa.

Um pouco desanimado, convenci-me não ter conquistado o estudante. Não lhe apresentei todos os ingredientes que ele expectava degustar no menu fastfood, algumas gírias, maneirismos de novela… faltou-me o molho. Fazer o quê? Quem é freelancer, ou seja, desempregado a fazer biscate e a ser chamado de empreendedor, passa por essas e outras mais. Quando se falha numa tentativa, volta-se para casa com a certeza de que amanhã será outro dia e que enfrentaremos todas as incertezas de novo, com a esperança de um resultado positivo.

Preparava-me para a despedida. O objetivo do estudante era praticar a língua. A minha função era assessorá-lo, apontando o que deveria melhorar, fazendo ajustes na conjugação verbal ou noutro aspecto sintático. Ele nada falava sobre o próximo encontro, até que me convidou para comer algo e beber um café. Dirigimo-nos ao balcão. Ele pediu ao empregado um pau de deus e dois cafés, se faz favor. O empregado riu, deixando-o meio embaraçado.

Voltámos à mesa. Perguntou-me o motivo do riso do empregado do balcão. Expliquei-lhe que a pronúncia correta era pão, não pau. Aquele era um ditongo nasal. Ainda lhe disse que pau também significava pénis conforme o contexto. Logo, se alguém pede o pau de Deus, quer receber o pénis divino. Insistiu em saber como era possível. Simples, a língua é viva e cheia de possibilidades. Para aprendê-la bem, basta vivê-la para além de um item disponível na montra de uma loja.

Alongámos a lição por alguns minutos. Esquecemo-nos da hora e, quando demos conta de que a noite caía, já se passavam duas horas de lição desde o minuto em que nos sentámos à mesa. Agradeceu-me pelos conhecimentos partilhados. Marcou a segunda lição para alguns dias depois.

Contente, voltei para casa a pensar que, por vezes, o dia de um professor-freelancer tem dessas coisas. Quando tudo parece perdido, vem um pau de deus salvar o dia. A distinção entre o pau e o pão (de deus ou não) é subtil e sem cor. É uma questão de ortoépia e, às vezes, de cavilação.

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Das saudades de papai (I)

Por vezes, duvido muito das saudades que papai me diz sentir. As saudades de ter-me por perto dele e de mamãe. Em geral, telefono e falo com mamãe. Quando ligo, ele nem sempre está em casa, nem sempre está com paciência para conversar.

É raro querer falar ao telefone. Quando isso acontece, uma das primeiras frases que me diz ao segurar o aparelho é “Rapaz, há quanto tempo…”. Pergunta como estou. Começo a falar-lhe e, em fração de segundos, percebo a sua impaciência e mesmo vontade de despedir-se.

Ele pergunta-me como estou. Respondo-lhe “bem”, mas sempre há um “mas”. Não é um “porém”, é um vulgar e monótono “mas”, o qual introduz uma preocupação, um desconforto, uma necessidade premente.

Corta-me: “Rapaz, quero saber como você está.” Para ele, é como se eu usasse a conjunção para tergiversar, para esconder-lhe qualquer coisa, para não falar sobre mim.

“Estou bem, mas muito preocupado com a situação do Lu…” Interrompe-me de novo. Tento completar a frase. De repente, ele precisa de ir atender alguém que está a chamar no portão.

A chegada inesperada de um estranho significa mais do que uma visita. Na verdade, pode não existir visita. Pode, sim, ser o seu ultimato para que eu restrinja o assunto a mim, à minha vida em Lisboa, à minha existência.

Mas como saber de mim sem considerar os outros? Sem ponderar o contexto político em que me insiro dentro e fora do nosso país? Já lhe tentei explicar que não posso desvencilhar-me dos eventos políticos do Brasil e do país onde ocasionalmente resida, além da realidade de outros países, mas… Parece-me que sempre afasta o aparelho do ouvido, antes que eu complete o pensamento.

Mesmo ele, que não aprecia o assunto, não conseguirá fazê-lo, digo, desatar-se da política. Posto que nunca tenha morado noutro lugar que não Mossoró, o quotidiano de papai é afetado por situações que se passam em Brasília, São Paulo, Rio, Natal e outras cidades do mundo. Não há existência que não seja política.

A sua rejeição ao diálogo sobre o tema não ajuda a resolver nada. De facto, piora tudo ou quase tudo. Não lhe permite perceber como o Brasil é visto a partir de fora. Não colabora para que possa receber notícias do filho.

Com frequência, antes de alguém chegar ao portão, papai chama mamãe e incumbe-lhe a tarefa árdua. Sim, parece-me que, para papai, falar com o filho que se jogou no mundo, que vive numa ou noutra margem do Atlântico que não a brasileira e que insiste na conjunção adversativa, é uma ação penosa.

Cara feia

“Que cara feia,” disse a encarar-me, “mas que cara feia, hein!”

Sem acanhamento, observava-me a alguma distância e, antes de cruzarmo-nos, mas já bem próximos, proferiu a frase em alto e bom som. Sem dúvida, tinha-me como destinatário. Por mais que eu me quisesse enganar, aquelas palavras à queima-roupa, quando os nossos corpos se cruzaram e nos encaramos, asseguraram-me que a feieza era minha.

Por vezes, sou lento, muito lento em perceber o que me querem dizer. Interpreto literalmente as frases. Após algum tempo, que pode significar minutos ou horas, recordo do facto, da frase, da expressão do interlocutor, do contexto… Eureca!

De imediato, busquei o meu reflexo numa vidraça. Temi ter a cara torta, paralizada. Um AVC ou qualquer coisa que me tivesse provocado o tal semblante. Fui até a casa a observar a minha imagem refletida em qualquer superfície minimamente espelhada que eu encontrava pela frente.

Não estava paralisado o rosto. Nenhum sinal de AVC nem de qualquer outro problema. Era apenas uma face sisuda, preocupada, austera (e ocupada com a austeridade), uma aparência grave.

A meu tempo, — cujos ponteiros, por vezes, se movem em sintonia com os meus pés —, consigo passar das denotações às conotações para, enfim, entender as pessoas através das palavras, mas também para além da superfície do texto. Então, à porta da casa, deduzi que aquela mulher me quisera perguntar: «Mas qual o motivo dessa cara tão séria?»; ou, em tom amistoso, quisera aconselhar: «Muda a cara e acalma o coração, pois dias melhores virão.»