Quarentena: nota dois

Eram dias de Março, Abril… Eram já dias pandémicos, mas não tão pandémicos quanto àqueles que haveriam de vir. Isto eu todavia não sabia.

Nesses dias, estava a assistir a conferências de imprensa, como nunca o tinha feito. Todos os dias, sem esforços para encontrá-las, deparava-me com presidentes, primeiros-ministros, primeiras-ministras, ministros, ministras, secretários, secretárias, diretores e diretoras de serviços de saúde. Todos, ou melhor, uns e outros, diante de mim, no ecrã.

Amiúde, eles chegavam, sentavam, acomodavam-se ante papéis, microfones, câmaras de filmagem e jornalistas. Tudo isso diante de si, a conferência tinha início. Números e números e números… uma curva em direção ao trágico… Com disciplina e controlo, — diziam —, achataremos a curva. Embora não nos encontrássemos numa montanha-russa em sentido ascendente, achatar a curva era a missão deles, e nossa.

A conferência caminhava para o fim. Acometiam-me ansiedades: nada mais, nada menos do que a incerteza do presente e a impossibilidade de esboçar planos de futuro. Receava integrar as estatísticas fúnebres e converter-me em um número sem corpo, sem nome, sem vida, um caso fatal da doença, mais um exemplo de sucesso da atuação do vírus.

Fonte: Mapa recuperado de Expresso (17/Mar/2020).

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Antes de as autoridades políticas e sanitárias levantarem-se, deixarem a sala e voltarem ao trabalho, jornalistas concorriam para dirigir-lhes perguntas. Havia quem contribuísse para esclarecer a população ou, pelo menos, os espectadores. Havia quem se esmerasse em ataques e tentativas de desestabilização do governo ou da autoridade responsável pelos serviços de saúde; isto, no caso de as forças governativas não corresponderem aos anseios da elite económica. Havia quem caprichasse em elogios, no caso de as forças governativas repercutirem os interesses dos grupos económicos mais poderosos.

Ao fim da agitação da comunicação social, impressionava-me uma indagação feita vezes sem fim por vozes diferentes, repetidas a ponto de tirar qualquer um do sério. Somente depois de responder a todos, as autoridades poderiam regressar ao campo de batalha contra o inimigo invisível, o vírus. Alguns jornalistas esforçavam-se para transformar a sabatina diária em uma altercação quase bélica.

Desligavam-se os microfones. O trabalho das autoridades deveria ser administrar e enfrentar a crise causada pelo surto do vírus, sobretudo com o intuito de salvar vidas. A meu ver, perante quem nos ocupava com insensatezes, menos esclarecimentos úteis à população, mais tentativas de ataque ou desestabilização de cariz político-partidário, as conferências de imprensa converter-se-iam em momentos prescindíveis. No entretanto, pessoas seriam confinadas em hospitais, lares, quartos, galpões improvisados, a suplicar vida.

Enfim, as principais figuras no combate à pandemia saíam do foco do ecrã. E eu desligava a TV sempre com a sensação de que muitos torciam para a curva subir e o mundo descer ladeira abaixo.

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Quarentena: nota um

Alguém se tem esquecido de banhar-se tanto quanto eu durante esta quarentena? Estava com tanta vontade de tomar banho na última quarta-feira, mas acho que me esqueci de fazê-lo.

Dei-me conta da falta de banho a meio de uma aula. Estou a participar em um curso online. Ainda bem que a sala de aula é virtual, pois, só assim, o professor e os outros alunos não conseguem sentir-me o cheiro.

Às 20h, os colegas começaram a despedir-se. Uma colega disse “até à segunda!” Segunda? Que estranho! Se estávamos a meio da semana, — pensei —, por que razão não teríamos aula na sexta-feira?

Era já sexta-feira, quando me dei por isso tudo. Estava tão cansado e perturbado, que dormi a perguntar-me quando tomara banho.

Sábado, acordei sujo, mas seguro de que a vida tinha de tomar um novo rumo. Era 25 de Abril. Pus-me todo limpinho, com energias renovadas. Mesmo impedido de ir à avenida, nutri as boas memórias.

Como todo 25 de Abril, eu queria vivê-lo à grande! O peito cheio de ganas de descer a Liberdade, com o cravo no peito, a cantar “Grândola, Vila Morena”, que me eriça os pêlos dos pés à cabeça, sempre a ansiar por igualdade, fraternidade e oportunidade para, com segurança, viver os versos de Zeca Afonso: “O povo é quem mais ordena/Dentro de ti, ó cidade”.