Quarentena: nota um

Alguém se tem esquecido de banhar-se tanto quanto eu durante esta quarentena? Estava com tanta vontade de tomar banho na última quarta-feira, mas acho que me esqueci de fazê-lo.

Dei-me conta da falta de banho a meio de uma aula. Estou a participar em um curso online. Ainda bem que a sala de aula é virtual, pois, só assim, o professor e os outros alunos não conseguem sentir-me o cheiro.

Às 20h, os colegas começaram a despedir-se. Uma colega disse “até à segunda!” Segunda? Que estranho! Se estávamos a meio da semana, — pensei —, por que razão não teríamos aula na sexta-feira?

Era já sexta-feira, quando me dei por isso tudo. Estava tão cansado e perturbado, que dormi a perguntar-me quando tomara banho.

Sábado, acordei sujo, mas seguro de que a vida tinha de tomar um novo rumo. Era 25 de Abril. Pus-me todo limpinho, com energias renovadas. Mesmo impedido de ir à avenida, nutri as boas memórias.

Como todo 25 de Abril, eu queria vivê-lo à grande! O peito cheio de ganas de descer a Liberdade, com o cravo no peito, a cantar “Grândola, Vila Morena”, que me eriça os pêlos dos pés à cabeça, sempre a ansiar por igualdade, fraternidade e oportunidade para, com segurança, viver os versos de Zeca Afonso: “O povo é quem mais ordena/Dentro de ti, ó cidade”.

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É melhor (não) esquecer!

Mal pus os pés à rua e logo me apercebi de que, às pressas, saí do supermercado, sem conferir o troco que a caixa me dera. De pronto, veio à mente a imagem da nota de cinco euros e algumas moedas na palma da minha mão, a qual prontamente se fechou e levou a quantia ao bolso do casaco.

Entregara-lhe uma nota de dez para tirar o valor referente a cinco pães d’água e uma manteiga da marca mais barata. A compra custar-me-ia dois euros e menos de trinta cêntimos, restando-me sete euros e setenta e poucos cêntimos.

A imagem do troco na palma da minha mão estendida. A imagem da minha mão fechada a invadir a escuridão do bolso e ali confiar a quantidade de dinheiro que eu tinha.

Abri a algibeira, peguei todo o dinheiro, contei-o e… menos de sete euros, por volta dos cinco euros e alguns cêntimos. Ai, que raiva senti de mim mesmo.

Dois euros. Perdi dois euros. Já não dava para retornar ao supermercado e reclamar o meu direito. Como provaria que eu não tinha má intenção? Como provaria que a caixa se enganara com a conta, e não eu? Ao pôr os pés fora do estabelecimento, perdi a razão de reclamar os dois euros. Dois euros. Que merda. Que raiva. Dois euros. Perdi-os.

“É melhor esquecer e estar atento da próxima vez em diante”, pensei. Fui para casa, com os meus pãezinhos d’água e a manteiga. Com aqueles dois euros, teria comprado até queijo. “É melhor esquecer,” pensei, “pois outros virão.”

Dias depois, regressei ao mesmo supermercado. Fui direto à secção de pães. Quatro pães d’água.

No caixa, coincidentemente, a mesma funcionária do outro dia. Desta vez, eu tinha moedas e daria o valor contadinho, para evitar mal-entendidos. Quatro moedas de vinte cêntimos.

“Sessenta e quatro cêntimos”, ela informou o valor da compra.

Passei-lhe as quatro moedas que separara.

“Obrigado e até próxima”, ela disse-me ao entregar duas moedas miúdas: uma de cinco e outra de um cêntimo.

Mais cauteloso, percebi que me faltavam dez cêntimos. Com a palma da mão ainda aberta, mostrei-lhe:

“Faltam dez cêntimos”, disse-lhe. “Dei oitenta.”

“Hã?”, ela fez cara de desentendida, mas, para a minha surpresa, pegou uma moeda de dez cêntimos e entregou-ma junto com as seguintes palavras: “Só vi setenta.”

Sem mais, agradeci e senti-me aliviado, mas, ao mesmo tempo, assarapantado. Uau. Por pouco, não perco dez cêntimos, assim como ocorreu com os dois euros noutro dia. Uau. Aprendi a lição, tenho de ser atencioso nesses momentos, mesmo que a fila esteja gigantesca e que pessoas apressadas e impacientes se chateiem por esperar um pouco mais. Uau. Epa. Como assim? Se só viu setenta, como me deu os dez cêntimos faltantes, sem nem conferir a nota da compra, nem contestar? Será que o supermercado não confere o registro do caixa ao fim do dia? Epa, de novo. Eu, de novo? Será que tenho cara de rico, a quem não faz falta unzinho aqui, outro acolá? Ou será que tenho cara de parvo, a quem vale tirar uns níqueis a cada ida ao supermercado?

“É melhor esquecer,” saí à rua, a falar comigo mesmo, ainda confuso, “mas… uau, dois, dez… fogo.” Outros andantes olhavam-me estranhamente. “É melhor não esquecer. É melhor não esquecer, pra não acabar a pão e laranja”, sem lhes dar a mínima, segui com o meu solilóquio, a cada passo em direção à casa.