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Cássio Serafim

Etiqueta: fome

fome (IV)

tenho os ossos a aleijar-me a alma
a cada contração involuntária
resultante da ação do suco gástrico,
que, na ausência de alimentos,
digere as paredes do meu cérebro
e corrói os meus passos,
que não desistem de seguir,
mesmo na fragilidade do hoje
e na consequente incerteza do amanhã.

arquejo, anelo, arfo…
— verbos antipoéticos para um peito débil —
receio sucumbir.
acotovelo a mesa e amparo a minha leveza desnutrida.

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Cássio Serafim Poemas, Solilóquio/Soliloquy Deixe um comentário 25 25+01:00 Outubro 25+01:00 2019 1 Minute

fome (III)

evito pôr o cotovelo sobre a mesa.
com os olhos descaídos, leio.
com os braços oscilantes, escrevo.
os ossos doem-me a carne da alma.

levanto-me.
caminho pra-lá-pra-cá
a penar.

um café cá, um café lá,
praquê o dinheiro dá.

termo do expediente.

da biblioteca à casa,
a carne que me resta
dói-me os ossos da alma,
quando caminho
para pensar.

os meus ossos contraem-se-me.
as minhas carnes doem-se-me.
a minha alma refreia-se-me.
energias e sentimentos remexem-se-me
em sorvedouro.

o olhar turvo.
os passos vagarosos.
o estômago grita.

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Cássio Serafim Poemas, Solilóquio/Soliloquy Deixe um comentário 16 16+01:00 Setembro 16+01:00 201918 18+01:00 Outubro 18+01:00 2019 1 Minute

fome (II)

escrevo,
canso.
leio,
canso.
paro.
evito os cotovelos sobre a escrivaninha.

é dura de mais.
levanto-me.

caminho pra-lá-pra-cá.

braços tiquetaqueiam lentos,

mas o tempo corre como o vento.
medo de pra casa voltar,
lá encontrar maria,
a bolacha

os ossos, os meus.
nem pra sopa dão.
as carnes, as minhas.
vixe, mainha,
nem pra canja.

da biblioteca à casa,
a carne aleija-me os ossos e a alma,
os ossos lanham-me a carne e a alma,
a alma faminta o destino titubeia.

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Cássio Serafim Poemas, Solilóquio/Soliloquy 2 comentários 4 04+01:00 Julho 04+01:00 201918 18+01:00 Outubro 18+01:00 2019 1 Minute

fome (I)

evito pôr os cotovelos sobre a mesa de trabalho. escrevo, canso, paro.

braços pendulares tictaqueiam, mas o tempo… o tempo… os ossos doem-me a carne e a alma.

levanto-me. caminho pra-lá-pra-cá a pensar: o que me trouxe aqui?

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Cássio Serafim Prosas, Solilóquio/Soliloquy Deixe um comentário 2 02+01:00 Julho 02+01:00 201918 18+01:00 Outubro 18+01:00 2019 1 Minute

«Beleza pura, pá!»

À beira do semáforo, falava com alguém. Os interlocutores eram o homem e a mulher brancos ao seu lado esquerdo. Foi o que pensei, mas somente ele se manifestava.

Girei a cabeça para a esquerda. Girou a cabeça para a direita. A boca mexia freneticamente. Articulava palavras. Proferia ideias que só fui perceber alguns passos depois.

Olhámo-nos. O sinal abriu.

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Pensei ser um monólogo. Enganei-me. Expunha-se a quem lhe ouvisse, mesmo na tentativa de ignorá-lo.

Notificava o mundo. Denunciava a fome. Anunciava a vontade de comer. Revelava a sua situação na vida. Pedia.

Apenas nos olhámos por instantes. Não me solicitou qualquer palavra de facto. Disse-lhe «é assim mesmo.» Não sei o motivo de eu ter proferido tais palavras. Melhor teria sido «entendo-te. Não está fácil.» Melhor teria sido…? Não sei. Melhor teria sido o silêncio? Não sei.

De qualquer modo, isso já não importa, pois dirigi-lhe o olhar, os lábios e o que veio deles. Os seus olhos nos meus, os meus nos seus, instantes suficientes para gerar um desconforto e um imperativo de atenção em mim, nele, de mim em sua direção, dele em minha direção.

«É desse jeito.»

Sentiu-se à vontade para desdobrar o monólogo num diálogo. E tornou-me o seu interlocutor. E tornei-me o seu interlocutor. Destravou o argumento de que a violência cotidiana resultava da insensibilidade de muitos para com aqueles que pediam na rua.

«Uma moeda. O gajo nega. Não sabe como o gajo está. Uma moeda. Diz que não tem. O gajo com fome. Sinto fome. Uma moeda, só uma. Não sabe como o gajo está. Com fome. Diz que não tem. Mas, aí, de dia, vejo o gajo no multibanco. Diz que não tem, pá. O gajo pede, porque tem fome. Diz que não tem. Aí, à noite, o gajo pega o gajo, sacode, aí vê que o gajo tem. Mas diz que não tem. Vejo o gajo no multibanco, pá.»

Entre uma frase e outra, eu dizia «é isso», «é desse jeito», «entendo», «sei como é»…

Entre uma frase e outra das que ele pronunciava, entre as frases interjectivas que eu pronunciava, ele ria. Não entendia a sua reação, mas ele ria alto.

Um ao lado do outro, já atravessávamos o segundo quarteirão, o segundo semáforo.

De súbito, parámos mesmo em frente ao supermercado. Entraria e compraria a dúzia que me custasse menos de dois euros. Era promoção, eu sabia-o. No bolso, guardava uma moeda de dois euros e necessitava de proteína. Não entraria, pois sabia do que se me esperava por parte do homem ao lado.

«Vejo o gajo no multibanco. Uma moeda? O gajo diz que não tem. O gajo dá a moeda, o gajo vê o gajo na rua e não mexe com o gajo, pá. É melhor pedir. Mas o gajo diz que não tem. Aí, o jeito é…»

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Parados, um a olhar o outro. Expectativas. Ele a falar. Eu a escutar-lhe.

Estendi-lhe a mão para a despedida: «Oh, vou lá.»

Estendeu-me a sua mão em reciprocidade: «Uma moeda, pá.»

«Desculpe-me, mas… nem multibanco tenho.»

«Beleza pura, pá!», disse-me a rir e a imitar o sotaque brasileiro que conhecia, o mais popular e reproduzido em Portugal. Não é o sotaque típico da minha região, mas tá, mas vá.

Apertámo-nos as mãos em cumprimento, em despedida, em reciprocidade, numa demonstração de condescendência mútua.

Sabia que nem tudo estava beleza, principalmente a nossa situação presente, as nossas condições de vida, mas, com um sorriso estampado na cara, «Beleza!», exclamei de volta e toquei-lhe o ombro. Puxou-me e deu-me um abraço caloroso.

Separámo-nos. Dirigi-me à casa, sem os ovos, mas com o espírito renovado pela troca de energia com aquele homem. Houve ali qualquer coisa que me fez bem.

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Cássio Serafim Contos, Diálogos, Prosas 2 comentários 4 04+01:00 Maio 04+01:00 20187 07+01:00 Maio 07+01:00 2018 3 Minutes
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