Eu só queria pão

Bastou-me pôr os pés na calçada da padaria. Um indivíduo desconhecido interrompeu-me as passadas, pondo-se à minha frente. Surpreendido, parei para evitar o esbarro. Era um rapaz que me oferecia um panfleto com dizeres religiosos. “Não, obrigado”, recusei o panfleto e, enquanto eu tentava desviar dele e seguir para os meus pães, ele, insistente, manteve o braço estendido à minha frente, com o papelinho, e pronunciou qualquer coisa que eu não compreendi propriamente.

A gente fica velha e tem a sua audição comprometida. Eu estou nesta fase. Então, solicitei-lhe que repetisse o que havia dito. “É a palavra de Deus”,  ele proferiu confiante. E eu, sem vacilo, respondi-lhe: “Não, obrigado.” Estava um pouco apressado. Ia à padaria e, em seguida, retornaria à casa para tomar café, antes de dirigir-me ao trabalho.

A minha rejeição àquele panfleto não deveria significar desrespeito à fé alheia. No entanto, eu percebi que aquele jovem rapaz não aceitava nem sequer entendia que eu não quisesse receber o que ele me oferecia de graça e com um sorriso na cara. Ele não apenas não captava a minha resposta, como também se sentia intimamente ultrajado. Não era esta a minha intenção. Eu só queria pão.

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“A música corajosa de um tambor distante”

Há factos em nossas vidas que podem suscitar novas experiências, descortinar veredas e inaugurar novas trajetórias pessoais. Há livros que fazem o mesmo, encetam novas leituras, interpretações e relações entre o leitor e os livros que ainda entrarão em sua vida. Foi o que me aconteceu no Gana, país onde vivi durante quatro anos e onde me envolvi em múltiplos encontros com os seus devidos ensinamentos.

Foi em meados de 2013, quando uma amiga me emprestou o livro Brave Music of a Distant Drum, de Manu Herbstein (2012), escritor sul-africano, naturalizado ganense. Dona Adelita, para além de ser uma pessoa querida, culta e de companhia agradável, sempre se mostrou uma amiga e de conselhos certeiros. No dia em que me entregou o livro, parecia dizer-me: “Você precisa de conhecer Ama”. E eu precisava mesmo, confirmei-o depois.

Viajei pelas mais de duzentas páginas escritas por aquele homem que tão sensivelmente registrou a história de uma mulher negra, velha, cega, escrava, que, quando jovem, princípio do século XIX, foi arrancada do seu universo e posta nos porões de um navio para, em longa jornada, cruzar o Atlântico e finar-se num rincão em plagas brasileiras.

Na transcorrência das laudas, eu não conseguia ler as palavras de um homem, do escritor, e nem sempre eu notava com precisão a interação entre as personagens. Porém, com vitalidade, sentia a voz de uma mulher forte que se fazia ouvir mesmo quando outros tinham o turno da palavra. Ama mostrou-se-me objeto de carne e osso, propriedade de outrem: indivíduos como ela tiveram as suas existências vilipendiadas por agentes de opressão e dominação interna e externa à sua terra de origem. Não obstante, Ama revelou-se-me sujeito: ela construiu a história de uma mulher cujas maiores características eram a sua firmeza de espírito, perseverança, destemor… uma narrativa repleta de aprendizagens, ensinamentos, tristezas, alegrias, ódios, amores… e, sobretudo, coragem de contestar o que parecia ser destino.

E o destino poderia ter sido o silêncio ignóbil imposto pelas forças colonizadoras dos estrangeiros e pelas forças do patriarcalismo, tão intensas na terra de onde foi extirpada e naquela onde foi lançada. Ou poderia ter sido a cegueira; não à sua própria, mas refiro-me à cegueira hedionda, social e coletiva, de quem ─ por ímpetos colonialistas ─ se nega a perceber o brio daqueles que foram vitimados pela soberba dos imperialismos de diferentes procedências. No entanto, Ama reservou a si e a todo e qualquer leitor que se aventure por sua trajetória uma melhor sorte: a eternidade de uma voz, que, mesmo abatida pelas circunstâncias da morte, é capaz de entoar a música de um tambor distante, com ressonâncias em ouvidos alheios, ditando o ritmo do que possa vir a acontecer.

Esse ritmo confunde-se com a escrita da narrativa que apenas se fez possível pelas mãos de Zacarias, que viajou de Salvador até o engenho onde Ama se encontrava. A atenção reservada por aquele jovem àquela mulher velha, negra, cega, adoecida, resultou na prova maior dessas ressonâncias. Ela era a sua mãe, aquela que o nomeou Kwame Zumbi, nome inicialmente recusado por ele sob o argumento de que não era um nome cristão. Escutar e escrever a história daquela mulher provocou-lhe a descoberta da sua própria história. Enaltecido com a bravura da mãe, embevecido com a música que a sua voz manifestava, Zacarias enfrentou quem ele muito respeitava, a quem era tão grato pelos ensinamentos cristãos e quem, por fim, ele identificou como reais algozes do silenciamentos do tambor que existia em si. Após a morte da sua genitora, Zacarias regressou a Salvador, à casa do Senhor Gavin Williams e da Senhora Miranda Williams, os seus donos, tendo em mãos aquelas folhas preenchidas com a história que compreendia não somente a vida da sua mãe, mas de todo um povo e a sua própria. Lá, ele foi aviltado por seu Senhor Williams, que ficou completamente encolerizado, ao tomar conhecimento das revelações sucedidas quando do contato entre o seu jovem escravo e a sua velha escrava cega. Num ato de bravura digno de ser filho de quem era, Zacarias rechaçou o seu nome cristão e assumiu-se Kwame Zumbi, conforme o desejo de Ama e para o desespero do Senhor e da Senhora Williams.

No romance de Manu Herbstein, a escrita mostrou-se como estratégia e instrumento utilizados pela protagonista para resistir às forças que causaram o seu exílio além-mar e que subjugaram populações. Paralelamente, a escrita foi capaz de preencher os vazios da alma de Kwame e de impeli-lo a apropriar-se de pertencimentos culturais que lhe tinham sido omitidos. Uma vez consciente da história da sua mãe, Kwame retomou o processo de constituição de si sob uma nova perspectiva, em que a identidade é concebida menos como essência e mais como resultado de um processo representacional constante, incompleto e confuso. Quando em contato com a mãe e a sua história, Kwame não se via a partir dos mapas conceituais apresentados pelos donos. Ama forneceu-lhe outros sistemas representacionais, inseriu-o em outros campos semânticos, os quais remetiam a culturas vistas, sob a ótica branca e cristã, como bestiais, não divinas, pecadoras, incivilizadas. Ama, portanto, ofereceu a Kwame a chance de reler-se e reinscrever-se como sujeito de ancestralidade africana.

A história de Ama ecoa metáforas de cor, carne e alma que se materializam ainda hoje. Consequências do período de escravidão, tráfico humano e outras ações da empresa da colonização iniciada no século XVI permanecem estruturando certos sistemas socioculturais mesmo no período chamado pós-colonial, os dias atuais. Sofrimentos ainda são sentidos. Quem ou o que poderia parar a dor de Ama ou de tantas Amas que existiram? Seria o seu silêncio? Não. Como bem adverte o autor na introdução do romance, o silêncio em relação às atrocidades do período da escravidão não apaga aquele momento lutuoso, mas a produção discursiva em torno do mesmo poderá evitar que algo parecido suceda de novo. Nesse sentido, a literatura e, em especial, o livro de Manu Herbstein mostram-se a mim como um importante canal não só para se transmitir uma música corajosa mas também para promover uma ação transformadora.

Referência
HERBSTEIN, Manu. Brave Music of a Distant Drum. Markham: Red Deer Press, 2012.

Nota: este texto foi publicado pelo Portal Geledés no dia 23 de Dezembro de 2015. Disponível no seguinte endereço: «http://www.geledes.org.br/a-musica-corajosa-de-um-tambor-distante/».

Interfone acintoso

Há pouco mais de cinco meses, eu habito neste endereço, uma cave num edifício velho, mas bem localizado no centro de Lisboa. Sou um estudante brasileiro em Portugal, concluindo parte da minha formação acadêmica. Recentemente, completei dois anos neste país, tempo suficiente para construir laços de amizade.

Entre os amigos conquistados está uma italiana que, às vésperas do Dia de São Martinho, inaugurava uma exposição de pinturas e desenhos. Como eu queria muito prestigiar o evento, passei todo o dia trabalhando em casa. À noite, um pouco atrasado, eu corria de um lado a outro a fim de aprontar-me o mais rápido possível.

Concluí parte do que fazia, desliguei o computador. Fui ao quarto, vesti a camisa e, enquanto eu buscava o casaco, o interfone tocou. Parei a minha busca e fui atendê-lo. Ouvi, do outro lado da linha, algumas vozes em diálogo.

_ Oi, disse.
_ Abre a porta, uma voz masculina ordenou.
_ A porta? Quem é, por favor?
_ Aqui é Sérgio pá! Abre lá esta porta. Vim para a reunião dos alveneiros, o pessoal da Associação.
_ Meu senhor, aqui é uma residência. Não é Associação, não.
_ Olha lá, seu aldrabão. Que não é Associação, o quê? Abre esta porta logo. Eu vim para a reunião.
_ Aldrabão?
_ Foi isto mesmo o que eu lhe disse, ele respondeu-me em tom jocoso.

Ouviam-se risadas vindas da calçada. Sem cuidado para não ser ouvido, o senhor falava para pessoas que provavelmente o acompanhavam: “O brasileiro não sabe que eu o insultei”. Riam. “Falam Português muito mal pá!”, alguém proferiu.

_ Abre esta porta pá, ele insistiu, enquanto os risos continuavam.
_ Meu senhor, para a Associação, utilize o interfone do lado contrário e não seja acintoso.
_ Do lado contrário? Que história é esta? Eu estou é a apertar a campainha certa. 
_ Eu já lhe disse: o outro interfone.
_ Aldrabão.
_ Vivaldino.
_ Olha lá pá. Olha este gajo.

_ Tenha uma boa noite, disse isto e devolvi o interfone ao seu lugar.

Voltei ao quarto e logo encontrei o casaco. Pu-lo enquanto abria a porta. Alcancei a rua. Já não havia ninguém. Teria sido um fantasma? Estava seguro de que não.

Escutei uma voz com sotaque arrastado. Olhei para o meu lado direito e percebi que era uma vizinha. Ela estava à janela, fumando, e confessou-me que se sentia afrontada, pois aquele indivíduo desaforado que usava o meu interfone aproximou-se dela e perguntou-lhe se ela não lhe queria vender o apartamento. Com brevidade, contei-lhe o que me havia ocorrido. Em meio a risos, ela exclamou:

_ Aquele lá é um chanfrado!

Eu, compartilhando do riso e da condição de ultrajado, acompanhei-a, perguntando ironicamente:

_ Será que querem transformar todo o edifício em sede da Associação?

Unimos os nossos risos em uma gargalhada sonora. Depois do regozijo dos afrontados, dirigi-me ao meu compromisso com a esperança de lá não encontrar alguém que se sentisse dono do espaço e da língua.

Leite derramado

Ontem, pela manhã, eu derramei o leite quase todo que havia na vasilha. O que eu queria era apenas fervê-lo e preparar o meu café. Um café dos tantos que preparo e bebo quando estou em casa. Mas, sem querer, eu derramei o leite. Desastradamente encostei a caixa de leite na lateral da leiteira, que desequilibrou, virou e…

O líquido branco escorreu pelo espaço quase exíguo que existe entre o lado esquerdo do fogão e um armário sem utilidade posto no canto de uma das paredes da cozinha. Que angústia. Que angústia. Sem exclamação, repito: quanta angústia senti.

Tudo poderia ter sido diferente. Eu queria ir para a universidade cedo, dar continuidade à escrita da tese. Eu tinha terminado o meu banho, já tinha tomado o café da manhã, mas resolvi ferver o leite para preparar outro café. Mais uma xícara do tão precioso vício antes de dirigir-me à biblioteca, onde passaria o resto do dia. Era somente isso que eu desejava. Poderia ter sido diferente.

O vício de café. Café ao leite. Café em pó jogado ao fundo da xícara em que despejaria o leite quente, bem quente. Um pouco de canela em pó. Chocolate em pó também cai bem. Não havia mais chocolate. Somente canela e café solúvel. Mas o leite derramou, inundou aquele canto da cozinha. Quanta angústia eu senti naquele momento. Inquietei-me com uma sensação curiosa sobre um possível significado espiritual para aquele acontecimento. Eu não poderia, porém, ficar o dia todo ali, pressagiando o que o dia me reservaria.

Afastei o fogão. Fui à área de serviço. Regressei à cozinha, com panos, água com detergente, uma vasilha pequena. Ajoelhei… Depois de alguns minutos, tudo estava limpo. E, logo, eu devolvi o fogão ao seu lugar, passei o leite restante para outra panela, busquei a caixa de fósforos, acendi um palitinho e… pronto. Esperei ali, ao lado do fogão, atento. Está subindo, está subindo, está subindo. Desliguei.

Xícara já a postos, colher pequena rodeada por café solúvel que já havia sido depositado no fundo daquele recipiente em que, dentro de alguns minutos, eu despejaria o líquido branco recém-fervido. E assim foi: o vapor subia, o leite descia e diluía o pó preto. Alquimia realizada.

Bebi o café, vesti-me, pus computador, livro, caderno, lápis e caneta dentro da mochila. Saí de casa. Na Estação Campo Pequeno, eu apanhei o metrô e desci na Estação Cidade Universitária. De lá caminhei até a biblioteca da Faculdade de Letras, onde permaneci até quase o encerramento do expediente, com o objetivo de gerar palavras escritas e laudas para a construção de uma tese e, por conseguinte, para a conclusão do doutorado ainda neste ano acadêmico.

Eram aproximadamente 21h, quando eu havia regressado à casa. Depois de entrar, acomodei-me no sofá por um instante. Só então, busquei o celular e percebi as mensagens da minha mãe e do meu irmão e uma chamada perdida da minha irmã. Enquanto a minha mãe me enviou “Seu avô Luiz deixou de sofrer”, o meu irmão foi mais incisivo: “Ei, vovô faleceu”. O meu avô morrera havia pouco tempo. Considerando a diferença de fuso horário, se em Portugal eram 21h ou quase, no Brasil era fim de tarde.

Telefone em punho, liguei para casa, falei com o meu pai. Ele disse-me que, devido às precárias condições de saúde do meu avô, todos já esperavam que aquilo acontecesse mais cedo ou mais tarde. Vovô encontrava-se sobrevivendo com a ajuda de aparelhos há alguns dias. Os batimentos cardíacos desaceleraram desde o fim de semana, segundo me disseram. Preocupei-me com o meu pai, com a sua pressão. Ele parecia estar bem ou, ao menos, com as emoções sob controle. E eu tentei passar uma palavra de conforto e ainda, por fim, aconselhei-o a tomar conta de vovó, digo, a cuidar dela da melhor forma possível.

Desliguei o telefone. E, como comumente ocorre, passei a avaliar o peso das minhas palavras destinadas ao meu pai. Demorei alguns minutos refletindo sobre a situação do falecimento, a experiência do luto, os seus sentimentos e os meus. Então, de súbito, lembrei-me do leite derramado.

Ontem, pela manhã, além da angústia, eu poderia ter sentido uma raiva pela perda do leite. Em tempos de crise, não penso que alguém goste de desperdiçar alimento. De modo particular, eu sou um tipo que não aprecia certas perdas, a saber, o leite derramado. Porém, entre encolerizar-me pelo meu movimento brusco e desastrado e decidir pela limpeza rápida, pela otimização do tempo e pela preparação de um novo café, eu optei pela segunda alternativa. Decidi que não podia chorar pelo leite derramado.

O meu avô faleceu em Mossoró, ontem, à tarde do dia 13 de Outubro de 2015. Eu não estava lá. Mesmo que estivesse no Brasil, eu não penso que estivesse com a minha família neste momento, por questões puramente circunstanciais (trabalho, estudo etc.). Eu sinto que ele se tenha ido. Todavia, felizmente, vovó respira. Foram anos cuidando de vovô, mesmo quando ele a fazia sofrer com mulheres, bebidas e cigarros. Foram anos ao lado dele, quando ele já não tinha força nem para levantar um copo de água. Foram anos em que ela deixou de viver.

Ontem, eu não chorei pelo leite derramado. Levantei a cabeça, arregacei as mangas da camisa, fiz o que tinha de fazer e segui em frente. Antes de encerrar o telefonema para o meu pai, eu fiz questão de lembrar-lhe que vovó ainda respira. Eu espero que ele, o meu pai, os seus irmãos e as suas irmãs deem o suporte de que vovó precisa para seguir em frente e para voltar a viver.

A minha primeira vez

Ontem, eu recebi um e-mail de Severino Figueiredo, escritor, idealizador e editor d’O Emplasto, revista literária digital. Ele avisava-me do lançamento da quinta edição da revista. A sensação de regozijo foi inevitável. A minha primeira vez. Senti-me (e ainda me sinto) como quando publiquei o meu primeiro artigo numa revista científica.

Entre os escritores colaboradores, estão: Anthony Portes, Cássio Serafim, Dany Costa, Juliana Bianchini, Carlos Almeida, Raniery Abrantes, Casciano Lopes e Hyalle. Todos foram profissionalmente orquestrados pelo próprio Figueiredo.

Talvez alguém me tome como exagerado devido à emoção citada. Porém, devo aqui registrar que a iniciativa de contactar a Revista O Emplasto faz parte de uma série de movimentos que tenho realizado no sentido de construir e fortalecer a minha autoconfiança. A abertura do blogue está entre tais movimentos.

Ao ler os poemas e perceber a trajetória dos demais colaboradores, sinto-me um tanto verde. Devo assumir que o sou. Porém, como ser escritor era um sonho meu adiado desde a infância (Veja a crônica Rasgue a tela, se puder!), a publicação de três poemas meus n’O Emplasto pode ser considerado o meu desvirginamento literato junto ao público.

Diante de tal contentamento, resta-me convidar a todas e todos para visitar a página da Revista O Emplasto. Se estiverem no Facebook, curtam a página: facebook.com/revistaoemplasto.

Que não mudamos o mundo com poesia desconfiamos, mas podemos interagir, construir redes e buscar inspiração. Então, fiquem à vontade para baixar gratuitamente as cinco edições! E lembrem-se de divulgá-las!

Rasgue a tela, se puder!

Rasgue a tela, se puder. Esta frase cair-me-ia bem hoje. Gostaria de usá-la para desafiar alguém que, um dia, amarrotou a minha estima, machucou a alma e adiou um projeto. Eu era ainda menino, vivendo com a família, no Conjunto Abolição IV, periferia de Mossoró. O meu pai possuía uma mercearia lá, a minha mãe era funcionária pública no posto de saúde do bairro vizinho, a minha irmã, o meu irmão e eu éramos três crianças de feitios diferentes e filhos de Seu Luiz Carlos e Dona Francineide.

Naquela época, a crise no Brasil era, sim, uma crise. Mesmo alguns canais de TV anunciando mentiras para encobrir interesses políticos mesquinhos, enfrentávamos problemas sociais e econômicos devastadores. A mercearia nunca conseguia ser mercearia. Por mais esperança que os meus pais tivessem, fazendo empréstimos a bancos e sortindo as prateleiras com artigos novos, as ações empreendedoras derrocavam poucas semanas depois, restando-nos as dívidas e os fiados, e o nosso comércio voltava a ser uma simples bodega. Ou nem isto! Tínhamos vergonha de assumi-lo como bar, sinônimo de vício e de prática não cristã. Mas, de facto, vendíamos pão e cachaça mais do que qualquer coisa.

Era uma tarde, quando eu geralmente ocupava o tempo fazendo os deveres da escola e atendendo na mercearia. Naquele dia, como muitos outros, o fluxo de clientes era mínimo. Pré-adolescente, com uma sexualidade que florescia tímida e temente à ideologia cristã, eu despejava no papel palavras difíceis de pronunciar. Tudo era pecado, como bem me ensinavam. Sobre o balcão, havia um maço grosso de papel de embrulho. Uma das folhas estava por menos da metade; a outra parte deveria ter-se ido protegendo um pão até à casa de alguma família do bairro.

De cabeça baixa eu estava, a caneta corria a superfície do papel e escorria a tinta azul no desenho lexical. A ânsia de registrar ali o que eu não poderia dizer, nem sabia como o fazer, nem que nome dar… era isso: a ansiedade de expressar-se.

_ Menino, seu pai sabe que você está estragando papel com essas besteiras?

Levantei a cabeça, assustado e envergonhado pelo flagrante. Aquele homem que entrara subitamente no estabelecimento havia-me lido sem que eu o percebesse, desdenhou e desdenhou de mim. Ele ignorava a palavra “privacidade” e o seu significado. Passou-me um sermão.

_ Oh, você, estruindo papel de embrulho. Depois, chega alguém pra comprar pão e o que você vai fazer? Eita, se seu pai pegar você, dá-lhe uma surra. Crie juízo, cabra.

Eu, menino tímido e acanhado na época, disse nada. Senti-me mal, muito mal, péssimo. As lágrimas esperaram alguns minutos, aguardaram a partida do invasor da minha privacidade e, depois, descambaram. Reduzi o papel, o embrulho, a escrita e a minha alma em pedaços. Primeiro, amassei-o com um desgosto tão intenso que eu, criança, não sabia explicar o que sentia nem por quê. Eu tentava imprimir tanta força naquele ato. E, como se não bastasse, eu desamassei e, então, comecei a arrancar cada pedacinho daquele finado papel de embrulho, triturando-o como estripando a alma.

Parece demasiado para uma criança. Porém, estava aquela criança na pré-adolescência, solitária, mal resolvida, com comportamentos de gênero já desde cedo criticados por alguns com frases inocentemente castradoras. O medo de que o filho fosse guei, o medo de que o sobrinho o fosse, o medo da honra manchada pela sexualidade do menino que não se enquadrava, que não jogava futebol, que não pegava as meninas, que ficava dentro de casa escutando Gil, Gal e os outros baianos, que não se dedicava muito à interação com outras crianças.

É interessante que ele era admirado por ser bom de matemática e de outros assuntos escolares, por ser um filho obediente, por ajudar ao pai e à mãe a tomar conta da mercearia e dos irmãos. No entanto, apesar disto, mais importante era vigiar e reprimir o menino estranho, um possível dissidente de um projeto de masculinidade hegemônica. Isto era mais importante do que permitir qualquer ensaio de criatividade, de escritura e de subversão de uma criança inocente. Temia-se o adulto em que ele poderia tornar-se.

O espaço daquele prospectivo embrulho de pão era um canal perigoso. Era povoado por uma caneta que parecia correr solta. Se o estranho amigo da família não surgisse inesperadamente, aquele papel seria o estopim de uma combustão de subjetividades. Aquele menino rabiscava o que sonhava ser quando crescesse. Ele imaginava que pudesse ser escritor. Hummm… Triste engano. Escritor? Ele tinha de sobreviver e sustentar-se. Depois de o papel-embrulho de alma ser atirado ao lixo, ele deixou aquele sonho de lado. Naquele contexto socioeconômico do país, ele até pensou que a única saída seria abrir uma banca em algum lugar, vender qualquer coisa e tentar a sorte na loteria. Que bom que o Brasil mudou, tem mudado gradativamente, ainda há muito por que lutar, mas que bom que os tempos são outros. O sonho de “quando eu crescer, eu quero ser” foi adiado. A cena do embrulho surgiu como punição. Porém, aquele menino, hoje adulto, voltou a acreditar na escrita como estratégia de construção de si, do fortalecimento da autoconfiança e do arrefecimento de emoções e traumas mal resolvidos.

Anos passaram, em outras plagas eu, aquele menino, estive e pude perceber que não importa o espaço e o tempo nem as crises a esses ligadas, mas é verdade que pão e cachaça são itens essenciais de qualquer cesta básica. Literatura seria dos gêneros supérfluos ou de luxo, se não fosse a minha cachaça e o meu pão de cada dia. Mas, mesmo durante o adiamento de um sonho, eu ainda me ensaiava, construía-me, rabiscava e arriscava-me. O projeto de tornar-se um escritor foi adiado por anos.  Mas, os tempos são outros. E o papel, entre as tantas utilidades que ganhou em minha vida, também surgiu com novas texturas. Já não é de celuloide, é virtual, democrático, acessível e… difícil de rasgar.

O taxista torcedor do Gana

Aconteceu-me há uns quatro anos, em Acra, Gana. Estava nas redondezas do Hospital Militar, perto da Estação 37, entre 18h e 19h. Muitas pessoas queriam voltar para casa. Dia de jogo: Brasil vs. Gana. Estava difícil pegar ônibus, tro-tro (como lá é chamada a van) e mesmo táxi. Empurra-empurra, disse-me-disse, corre-praqui, corre-pracolá… uma confusão danada.

Ufa. Depois de algum tempo, estava eu sentado dentro de um táxi, com mais três pessoas. Éramos todos estranhos uns aos outros. Só tínhamos algo em comum: sair dali em direção a Madina. De Zongo Junction, em Madina, eu ainda iria até Sakora, Sun City, bairro onde morava.

Pronto, táxi lotado, o motorista deu partida, mas, antes, deixou claro que só iria até Madina e que cada um pagaria 2Ghc. Durante o trajeto, muita conversa sobre futebol. Eu, calado. Alguém percebeu o meu silêncio. Obruni, where’re you from? Eu disse Brazil. Risos. Algumas piadas referentes à atuação do time brasileiro foram feitas. Eu sorri desajeitadamente. Eles continuaram envolvidos em suas apostas de quantos gols e coisas do tipo. Deixaram-me em paz. E eu sentia-me agradecido. Não estava para muita interação. Não aprecio futebol e, ademais, eu estava exausto devido ao dia de trabalho concluído ainda há pouco.

Stop. O táxi parou, alguém desceu, continuamos. Stop over there, please. Desceu alguém mais. À medida que a longa fila de carros avançava em direção a Zongo Junction, os passageiros iam descendo e, automaticamente, pagando o valor antes indicado. Conforme a dinâmica dos táxis compartilhados, descendo alguém no meio do trajeto, outra pessoa poderia juntar-se ao grupo restante, ocupando a vaga deixada. Este, porém, não foi o caso naquele dia.

A certa altura, dei-me conta que só estávamos eu e o taxista. Ele perguntou onde eu gostaria de descer, pois lá estava Zongo Junction, trânsito agitado e caótico, impossível de o táxi avançar um pouco mais. Logo, seria mais inteligente parar um pouco antes e caminhar para a estação mais próxima, a fim de pegar um tro-tro ou outro transporte para Sakora.

Here it’s ok. Eu falei isto dois ou três minutos depois. Ele fez menção de estacionar o carro, mas, com o trânsito engarrafado, nenhum automóvel mexeria do seu lugar por um tempo, e ele pediu-me para sair ali mesmo. Eu fi-lo de bom grado, mas, antes disso, tirei o dinheiro da carteira e estendi-lhe a mão. 4Ghc, ele pronunciou, recusando-se a aceitar o valor. Da-be-da-be-da-be… You said 2Ghc, chale. Eu disse que o valor tinha sido combinado antes e, então, não era justo ele mudar o preço naquele exato instante.

Apesar do cansaço, eu estava decidido a não ceder à chantagem. Proferi algumas expressões em Twi, surpreendendo-o e tentando fazer-me amigável e dissuadi-lo da tentativa de extorsão. Não obtive sucesso. Ele ainda tentou arrancar de mim o dobro do preço estipulado pela corrida, com argumentos bastante conhecidos por qualquer usuário de táxi em Acra, independentemente de ser estrangeiro ou nacional.

_ Obruni, this place is too far oooo. And traffic is too much.
_ Chale, it is not, you know, it is not too far. And traffic is always too much in Accra, you know.

Enquanto ele insistia falando de distância e congestionamento, eu perdia um pouco da minha paciência e, de súbito, elevei o tom de voz, dizendo que ou ele recebia aquele valor ou eu desceria ali mesmo e muito grato pela carona que ele me havia dado. Chale, if you don’t take this money, I only have to say Thanks for the ride. Ok?

Ele fitou-me surpreendido e, ao mesmo tempo, decepcionado por não ter logrado na chantagem. Eu estendi-lhe a mão com o dinheiro de novo.

Which team you support tonight?, ele indagou-me sorrindo. Oxente. Ainda mais esta, eu pensei. Orapor que time eu torceria? Sem paciência, eu gritei Ghana, man, Ghana, me patcho.

Ele gargalhou, pegou os 2Ghc, eu desci e fechei a porta do carro. Ele deu partida e acenou-me Obruni, obruni, goodbye ooo.

Eu sorri, por fim, e segui para a próxima estação. Em poucos minutos, eu deveria estar dentro de outro táxi, barganhando, argumentando e, com sorte, entendendo-me com mais um taxista, mas o destino seria outro. Hey, Sakora? E talvez, de novo, futebol fosse motivo de conversa. Oxalá eu soubesse usá-lo para barganhar o preço da corrida.

Um “nós” sem genitália

Santa Diabólica Elucidativa da Solidariedade Feminista: “Quem sou eu? [Risos] Ora, quem sou eu? Quem sois vós? Dizei-me, primeiro. Melhor: quem somos nós?”

Serafina: “Eu sou a sujeita que passou a existir depois da morte do sujeito. Ou seja, o sujeito morreu e nem me convidaram para o funeral. Nem pra carpideira servi. E, depois do enterro do sujeito, disseram-me que eu poderia existir, que poderia ser sujeito ou sujeita.”

Ioco S.: “Tenho pau, bunda, vagina, cloaca, possuo buracos donde se entra e sai e onde me embrenho. Tenho prazer em ensaiar-me naquilo que ignoro, que desafia e que te encanta, espanta e causa ojeriza.”

Cássio S.: “Busque-me o vinco. Vá, venha, vá… Está quente. Mais um pouco você o encontrará. Ei, pare! Pare! Não tente virar-me. Estou avisando, dona Santa. Não tente. Quer assustar-se? [Risos] Do outro lado, o que vai encontrar? [Gargalhadas] Você não sabe?”

“Púbis”, by Ioco S./Cássio Serafim, 2014.

Ioco S.: “Busca-me o vinco. Não tenta virar-me. Não queiras assustar-te. Pois, do outro lado, que vais encontrar?”

Santo Transebastião: “Eu sou a fonte de alimento para o sanguessuga que existe em todos vocês e que, entre as minhas pernas, vem aliviar a sede. Que sede? A sede do patriarcado.”

Santa Diabólica Elucidativa da Solidariedade Feminista: “Quem somos, então? Está ainda mais difícil definir esse ‘nós’, uma vez que cada um fala somente de si. E, ainda, parece-me que tentam e que tentamos definir-nos a partir da ausência ou da presença deste ou daquele órgão em nossos corpos. E, ainda, parece que a importância de cada um se dá de acordo com o órgão que possui. Se alguém tem um pênis, este vale mais no mercado das relações sociais. Se tem uma vagina, o valor é reduzido e ainda mais dependendo dos seus níveis de melanina. Enquanto o mundo social for organizado sob uma perspectiva ideológica que é BIO-lógica, a igualdade de gênero será um sonho bem distante. E, se nós, feministas, participarmos desta lógica sem lógica, a sororidade entre mulheres feministas e a desejada solidariedade entre mulheres e homens feministas também serão de difícil alcance. Imaginem se a linguagem comum tão sonhada for construída apenas por meio de corpos com determinada genitália em comum! Como poderemos construir uma solidariedade, uma linguagem comum, um suporte político feminista, antirracista, anti-colonial? Já não será a hora de construirmos um ‘nós’ sem genitália? Será possível tê-lo?”