Eu só queria pão

Bastou-me pôr os pés na calçada da padaria. Um indivíduo desconhecido interrompeu-me as passadas, pondo-se à minha frente. Surpreendido, parei para evitar o esbarro. Era um rapaz que me oferecia um panfleto com dizeres religiosos. “Não, obrigado”, recusei o panfleto e, enquanto eu tentava desviar dele e seguir para os meus pães, ele, insistente, manteve o braço estendido à minha frente, com o papelinho, e pronunciou qualquer coisa que eu não compreendi propriamente.

A gente fica velha e tem a sua audição comprometida. Eu estou nesta fase. Então, solicitei-lhe que repetisse o que havia dito. “É a palavra de Deus”,  ele proferiu confiante. E eu, sem vacilo, respondi-lhe: “Não, obrigado.” Estava um pouco apressado. Ia à padaria e, em seguida, retornaria à casa para tomar café, antes de dirigir-me ao trabalho.

A minha rejeição àquele panfleto não deveria significar desrespeito à fé alheia. No entanto, eu percebi que aquele jovem rapaz não aceitava nem sequer entendia que eu não quisesse receber o que ele me oferecia de graça e com um sorriso na cara. Ele não apenas não captava a minha resposta, como também se sentia intimamente ultrajado. Não era esta a minha intenção. Eu só queria pão.

Sábado

Sábado, ele foi à praia e encontrou-se. O sol, o mar, a areia, a brisa, o seu corpo e a sua alma, o espaço livre, aberto e infinito. Ele pouco se recordava de tais sensações. Esteve ali, atado a si mesmo.

“Homem na praia”, by Cássio Serafim, Portugal, 2015.

Tudo ele adiou: as leituras; a revisão dos capítulos da tese; a busca de editais; os e-mails pessoais… o planejamento do futuro. Há tanto tempo, ele desconhecia isto: ser a prioridade dos seus compromissos.

Sábado, ele agendou o presente sem arrependimentos. Poderia, contudo, ter sido outro dia.