Cássio Serafim

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ovos

«Beleza pura, pá!»

4 04+01:00 Maio 04+01:00 20187 07+01:00 Maio 07+01:00 2018 / Cássio Serafim / 2 Comentários

À beira do semáforo, falava com alguém. Os interlocutores eram o homem e a mulher brancos ao seu lado esquerdo. Foi o que pensei, mas somente ele se manifestava.

Girei a cabeça para a esquerda. Girou a cabeça para a direita. A boca mexia freneticamente. Articulava palavras. Proferia ideias que só fui perceber alguns passos depois.

Olhámo-nos. O sinal abriu.

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Pensei ser um monólogo. Enganei-me. Expunha-se a quem lhe ouvisse, mesmo na tentativa de ignorá-lo.

Notificava o mundo. Denunciava a fome. Anunciava a vontade de comer. Revelava a sua situação na vida. Pedia.

Apenas nos olhámos por instantes. Não me solicitou qualquer palavra de facto. Disse-lhe «é assim mesmo.» Não sei o motivo de eu ter proferido tais palavras. Melhor teria sido «entendo-te. Não está fácil.» Melhor teria sido…? Não sei. Melhor teria sido o silêncio? Não sei.

De qualquer modo, isso já não importa, pois dirigi-lhe o olhar, os lábios e o que veio deles. Os seus olhos nos meus, os meus nos seus, instantes suficientes para gerar um desconforto e um imperativo de atenção em mim, nele, de mim em sua direção, dele em minha direção.

«É desse jeito.»

Sentiu-se à vontade para desdobrar o monólogo num diálogo. E tornou-me o seu interlocutor. E tornei-me o seu interlocutor. Destravou o argumento de que a violência cotidiana resultava da insensibilidade de muitos para com aqueles que pediam na rua.

«Uma moeda. O gajo nega. Não sabe como o gajo está. Uma moeda. Diz que não tem. O gajo com fome. Sinto fome. Uma moeda, só uma. Não sabe como o gajo está. Com fome. Diz que não tem. Mas, aí, de dia, vejo o gajo no multibanco. Diz que não tem, pá. O gajo pede, porque tem fome. Diz que não tem. Aí, à noite, o gajo pega o gajo, sacode, aí vê que o gajo tem. Mas diz que não tem. Vejo o gajo no multibanco, pá.»

Entre uma frase e outra, eu dizia «é isso», «é desse jeito», «entendo», «sei como é»…

Entre uma frase e outra das que ele pronunciava, entre as frases interjectivas que eu pronunciava, ele ria. Não entendia a sua reação, mas ele ria alto.

Um ao lado do outro, já atravessávamos o segundo quarteirão, o segundo semáforo.

De súbito, parámos mesmo em frente ao supermercado. Entraria e compraria a dúzia que me custasse menos de dois euros. Era promoção, eu sabia-o. No bolso, guardava uma moeda de dois euros e necessitava de proteína. Não entraria, pois sabia do que se me esperava por parte do homem ao lado.

«Vejo o gajo no multibanco. Uma moeda? O gajo diz que não tem. O gajo dá a moeda, o gajo vê o gajo na rua e não mexe com o gajo, pá. É melhor pedir. Mas o gajo diz que não tem. Aí, o jeito é…»

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Parados, um a olhar o outro. Expectativas. Ele a falar. Eu a escutar-lhe.

Estendi-lhe a mão para a despedida: «Oh, vou lá.»

Estendeu-me a sua mão em reciprocidade: «Uma moeda, pá.»

«Desculpe-me, mas… nem multibanco tenho.»

«Beleza pura, pá!», disse-me a rir e a imitar o sotaque brasileiro que conhecia, o mais popular e reproduzido em Portugal. Não é o sotaque típico da minha região, mas tá, mas vá.

Apertámo-nos as mãos em cumprimento, em despedida, em reciprocidade, numa demonstração de condescendência mútua.

Sabia que nem tudo estava beleza, principalmente a nossa situação presente, as nossas condições de vida, mas, com um sorriso estampado na cara, «Beleza!», exclamei de volta e toquei-lhe o ombro. Puxou-me e deu-me um abraço caloroso.

Separámo-nos. Dirigi-me à casa, sem os ovos, mas com o espírito renovado pela troca de energia com aquele homem. Houve ali qualquer coisa que me fez bem.

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