#FiqueEmCasa, mas, quando você vive em uma casa partilhada com outros estudantes ou trabalhadores cujas atividades foram temporariamente suspensas, estão todos juntos a respirar os mesmos ares ao mesmo tempo e por longas horas. PERIGO!
#FiqueEmCasa, mas, quando você divide o quarto com alguém nessa casa partilhada (qualquer coisa como uma república estudantil ou um albergue), ares e gases a circularem livremente, você confinado, PERIGO! PERIGO! PERIGO!
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Quem consegue manter-se isolado e seguro em “hashtag”, aliás, em confinamento?
Passava-se quase uma hora do fim do ano. Quase uma hora passava-se do novo ano a correr. Dei-me por mim a pensar desde quando vivia a pandemia. Foi aproximadamente a essa altura no ano que findou quando soube através do noticiário que um novo vírus surgira em uma cidade chinesa. Nada parecia pandemia nem mesmo epidemia. Mas tinha em mim qualquer coisa, qualquer vírus, qualquer surto sensitivo que me alertava.
A 2 de janeiro de 2020, um amigo chinês regressou a Portugal: não vinha de Wuhan, mas vinha da China. Queria ver-me, queria vê-lo. Perguntava-me à altura: “E o vírus?” Facto é que o nosso reencontro veio a correr quase três meses depois.
Meados de janeiro, contactou um senhor estadunidense interessado em aulas privadas para exercitar a língua. Falava português e queria praticá-lo. Perguntava-me à altura: “E o vírus?” As aulas deram-se na primeira semana de fevereiro. Ainda não se usava máscara na rua. Eu prendia a respiração, sempre que podia.
Antes disso, estive a dar lições para um senhor inglês, que estava em trânsito entre Londres e Lisboa. O vírus já tinha sido detetado no Reino Unido. Pedia-lhe sempre que lavasse as mãos ao chegar para a lição. Eram bons momentos de interação e aprendizagem, até que anunciaram o primeiro estado de emergência. Nunca mais o vi.
Já era abril. Confinamento-sim, confinamento-não… A anormalidade das restrições normalizava-se, assim como a escassez de trabalho e as escassezes. Nada de revisão, de aulas, de check-in… Um telefonema trouxe a promessa de mudança. Um senhor do Nepal queria lições de português para ele, a esposa e a filha. Tinha de ir à sua casa. À altura, não mais me perguntava: “E o vírus?” Eu usava máscara e lambuzava as mãos com álcool, sempre temeroso de que um fumante se aproximasse de mim.
Foi assim que cheguei à sua casa no Rego, com máscara na cara. A surpresa era não três, mas quatro alunos, dois dos quais pertenciam ao grupo de risco: o pai, septuagenário; o filho, obeso, fumante, sedentário. Desde o primeiro encontro, percebi a má vontade em usar a máscara, mas protegiam-me: punham a máscara após a minha entrada no apartamento. As lições corriam bem, até que um dia espirrei. Nunca mais os vi.
Início de dezembro, o amigo chinês e eu encontrámo-nos. Defendera a sua tese de mestrado e alcançara uma boa nota: uma ótima notícia. Estaria de regresso ao seu país dentro de poucos dias. Comemos chocolate e tirámos fotos. Talvez não o veja mais.
Dezembro, o estadunidense das aulas de fevereiro escreveu-me a contar como fora especial a sua consoada na companhia do marido. Perguntou-me como tinha passado. Disse-lhe na companhia de duas gatas. Perguntou-me o que comera de especial. Disse-lhe “um ovo”. Não me disse mais nada. Mas que raio de gente que pensa que jantar de Natal tem de ter uma mesa de abundância e desperdício?!?!
Última semana de dezembro, últimos dias de 2020, uma pessoa próxima — daquelas que sempre dizem que nos vão telefonar, mas esquecem e nós até lhes agradecemos o esquecimento, por termos nenhuma novidade nem mesmo paciência para falar — mandou-me mensagem a perguntar onde eu passara a véspera do Natal. Disse-lhe “em casa”. Ela seguiu: “Por opção?” Perguntei-lhe: “Não há pandemia por aí?” Antes de instalar-se o silêncio, recebi “kkkkkkkk”.
Já lá se foi o primeiro ano de uma pandemia vivida.
Eram dias de Março, Abril… Eram já dias pandémicos, mas não tão pandémicos quanto àqueles que haveriam de vir. Isto eu todavia não sabia.
Nesses dias, estava a assistir a conferências de imprensa, como nunca o tinha feito. Todos os dias, sem esforços para encontrá-las, deparava-me com presidentes, primeiros-ministros, primeiras-ministras, ministros, ministras, secretários, secretárias, diretores e diretoras de serviços de saúde. Todos, ou melhor, uns e outros, diante de mim, no ecrã.
Amiúde, eles chegavam, sentavam, acomodavam-se ante papéis, microfones, câmaras de filmagem e jornalistas. Tudo isso diante de si, a conferência tinha início. Números e números e números… uma curva em direção ao trágico… Com disciplina e controlo, — diziam —, achataremos a curva. Embora não nos encontrássemos numa montanha-russa em sentido ascendente, achatar a curva era a missão deles, e nossa.
A conferência caminhava para o fim. Acometiam-me ansiedades: nada mais, nada menos do que a incerteza do presente e a impossibilidade de esboçar planos de futuro. Receava integrar as estatísticas fúnebres e converter-me em um número sem corpo, sem nome, sem vida, um caso fatal da doença, mais um exemplo de sucesso da atuação do vírus.
Antes de as autoridades políticas e sanitárias levantarem-se, deixarem a sala e voltarem ao trabalho, jornalistas concorriam para dirigir-lhes perguntas. Havia quem contribuísse para esclarecer a população ou, pelo menos, os espectadores. Havia quem se esmerasse em ataques e tentativas de desestabilização do governo ou da autoridade responsável pelos serviços de saúde; isto, no caso de as forças governativas não corresponderem aos anseios da elite económica. Havia quem caprichasse em elogios, no caso de as forças governativas repercutirem os interesses dos grupos económicos mais poderosos.
Ao fim da agitação da comunicação social, impressionava-me uma indagação feita vezes sem fim por vozes diferentes, repetidas a ponto de tirar qualquer um do sério. Somente depois de responder a todos, as autoridades poderiam regressar ao campo de batalha contra o inimigo invisível, o vírus. Alguns jornalistas esforçavam-se para transformar a sabatina diária em uma altercação quase bélica.
Desligavam-se os microfones. O trabalho das autoridades deveria ser administrar e enfrentar a crise causada pelo surto do vírus, sobretudo com o intuito de salvar vidas. A meu ver, perante quem nos ocupava com insensatezes, menos esclarecimentos úteis à população, mais tentativas de ataque ou desestabilização de cariz político-partidário, as conferências de imprensa converter-se-iam em momentos prescindíveis. No entretanto, pessoas seriam confinadas em hospitais, lares, quartos, galpões improvisados, a suplicar vida.
Enfim, as principais figuras no combate à pandemia saíam do foco do ecrã. E eu desligava a TV sempre com a sensação de que muitos torciam para a curva subir e o mundo descer ladeira abaixo.