é ele o culpado

não tenho endereço.
também não o tens tu.
desejado foste,
mas nunca aqui chegaste.

por ti depositei seis dinheiros,
mas nunca te pus as mãos.
nunca o teu corpo abri.
nunca nas tuas partes
imprimi a marca do meu suor.

e é ele o culpado.
kapa-dois-barra-lojadelivroeminglês,
o alfarrabista do instagram,
diz ter-te-me enviado,
mas não foi correio registado.

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O Vento

O vento
jogando-se,
espalhando-se,
perfumando-se
como folhas outonais,
como aromas primaveris,
como embriaguezes pluviais,
como uma mão fálica e aveludada e invasiva e perseverante
de movimentos incessantes e progressivos e voltívolos,
cadenciados e até… furtivos.

O vento vem-se em mim,
por dentro, afagando-me,
ao todo, usurpando-me,
por fim, fecundando-me.

O vento tem-me no fundo
alojado 
sementes
a germinar.

Oblação transgênero

A vós que cobiçais o vigor
dos fluidos que jorram
das minhas entranhas,
recebei-me a mim
sem pretensão maternal.

É por mera culpa católica,
a mim imputada pela blasfêmia cristã,
que aqui estou para servir-vos.
Gozai-vos uns dos outros
e provai da ignomínia
que a mim impusestes.

Se tiverdes fome, vinde
e dar-vos-ei de comer.
Aceitai como oblação
este corpo transgênero,
alimento saudável para o vosso mal,
semente para acoimar a paz clerical.

Entre solidões

Sob a benção da burguesia divina,
a minha razão está dominada.
Entre solidões e lutas palpáveis,
o meu coração dilacera-se
por um amor inimaginável.
Em plagas de calores
que influenciaram as minhas origens,
encontro uma ilha como companhia.
Será que sou Saraha?
Ou só um corsário,
vitimado por angústias identitárias,
a desperdiçar a flecha lançada?

Nunca me esqueça

Tenha-me, ao menos, na lembrança
como um presente de Iemanjá,
que, naquela noite estranhamente encantada,
me levou até você,
que na praia me esperava.

Esqueça-se nunca de mim,
nem que me tenha como nada.
Nada que lhe faça bater tão forte o coração,
a ponto de, até mim, mover-se
para beijar-me a testa,
antes de dormir.

Sei do seu cansaço,
dos seus objetivos
sempre maiores,
mas apenas lhe peço:
esqueça-me nunca.

Naquela noite,
a brisa jogava-me aos seus braços,
enlaçando-nos num terno amasso.
E, assim, por todos os tatos
em nossas almas digitalizados,
eu de você nunca me esquecerei.

ele delas

ele aprendeu a amar (d)elas
ele aprendeu a se amarrar nelas
aprendeu o amor delas
e encontrou uma Dela para amar
uma Dela pra ser dele
ele passou a ser Dela
e Dela dele
Dela era bela
a bela Dela dele
mas ele aprendeu a amar elas
e assim esqueceu Dela
quando achou outra bela
que também foi preterida
quando ele topou outra
que não era locução adjetiva
essa era substantivo
nome próprio
com canudo e gabarito
se antes alguém disse elas dele,
passou a dizer ele delas
e agora diz ele e ela
ele foi obrigado a viver só com essa
a deixar delas belas
a não pensar em belas delas
antes não conseguia esquecê-las
agora ele só se lembra dessa
ele aprendeu o amor delas
aprendeu a se amar nelas
encontrou outra ela
jogou o canudo no lixo
preferiu uma que bebe no gargalo
e agora só vive nela.

Tecendo nós dois

Com cara de bobo,
olho a tela do computador,
esperando as suas palavras,
como se lhe admirasse
o rosto meigo bem próximo a mim,
como se lhe olhasse a boca
na expectativa de respirar
cada palavra proferida por você.

E você
só pronuncia amor e sentimentos nobres,
emudecendo os meus lábios falantes,
paralisando as minhas mãos inquietas,
compassando o meu coração disparado.

E as palavras
atravessando a tela,
entrando em mim,
tecendo nós dois.

Abra o seu armário!

Entre no seu armário,
feche as portas,
avalie o que há dentro:
trajes novos da estação passada,
peças velhas jamais usadas,
enxoval que não veste
nem o corpo nem a alma.

Abra o seu armário
para outras vidas,
para a diversidade,
para você.
Conheça os outros
e a si mesmo,
conceitue,
conceitue-se.

Depois disso,
você conseguirá,
– é possível -,
abrir as portas da sua vida
para ser bem-aventurado
ou até conscientemente belisário.